Quem sou eu

sábado, 9 de junho de 2018

Sobre Ausências e Presenças

Faz dois meses que minha mãe virou estrela. Juntou-se a uma constelação de mulheres maravilhosas que marcaram a minha vida e que, há tempos, não estão mais por aqui. Minha madrinha e tia Dudu, minha tia Horaida, minha tia-avó Leopolda, minha mãe postiça Elzita, minhas amigas Elvira e Tana,  além das Celinas, avó e mãe do meu marido, que não cheguei a conhecer, mas que passei a amar pelo que vejo delas nele.
Imagem Google

A saudade que sinto da minha mãe me faz lembrar de todas essas mulheres, que sempre me inspiraram e de alguma forma me influenciaram a ser quem sou.  E mesmo que elas não tenham necessariamente convivido entre si enquanto estiveram por aqui, gosto de pensar que, onde estiverem agora, estão juntas, apreciando uma boa taça de vinho, como minha mãe e madrinha gostavam, e se dedicando a looooongas e saborosas conversas. E, claro, olhando por mim.

Posso ver minha vó Leopolda, debruçada sobre a grande mesa com tampo de mármore, que tinha na copa, abrindo a massa que ela mesmo fazia para os almoços de domingo.  Junto com meu tio-avô Ramos, ela ocupou o lugar dos avós que não conheci e me mimou como se neta fosse. Acho que lá, na dimensão das estrelas, continua    convidando todos ao seu redor para comer seu imperdível ravióli e debatendo ardorosamente com sua filha, minha tia Horaida, a necessidade de arrumar a mesa com uma legitima toalha de linho bordada na Ilha da Madeira. Vó Leopolda acreditava piamente que o ritual à mesa influenciava o apetite; minha tia Horaida não discordava, mas pensava que era possível modernizá-lo, pelo menos no que tocava toalhas engomadas... Porém, sempre cedia aos argumentos da mãe. E foi ali, tenho certeza, que comecei a apreciar mesas ornadas com cristais e castiçais. E onde também descobri o sabor de casa em festa materializado nos fios de ovos, que minha tia Horaida se esmerava em caramelizar toda vez que decidia dar um toque de requinte aos seus assados.

O requinte talvez não fosse a maior qualidade da minha madrinha e tia Dudu, mas ela transbordava em generosidade e bom humor. Mesmo não dispondo com meu tio Leo de muitos recursos e tendo que dar conta de quatro filhos, sua casa estava sempre aberta para sobrinhos, afilhados, vizinhos, agregados e quem mais chegasse para fazer uma boquinha e/ou bater um papo.  Foi sempre a melhor colônia de férias da minha infância e adolescência. Ali aprendi a viver em grupo e a abrir mão da minha egotrip de filha única para compartilhar brinquedos, cama, roupa, comida e risadas. Ali me dei conta de que o mundo ia além do meu próprio umbigo e que uma boa gargalhada pode curar as piores feridas.

Foi através de outra filha única, minha amiga Patricia, que ganhei Elzita, mãe dela e que aos poucos foi se tornando minha mãe postiça. Eu tinha 18 anos e acabara de chegar de Petrópolis para cursar jornalismo no Rio. Conheci a filha no corredor da universidade, desbussolada como eu, procurando pela sala de aula; em cinco minutos viramos amigas de infância. As duas, mãe e filha, em pouco tempo me adotaram e a casa delas passou a ser também a minha. Com elas entendi o que é ter uma família do coração — aquela que a gente escolhe pelos laços do afeto.

E foram esses laços que, entre os vinte e poucos e os trinta e alguns anos, me conectaram a Elvira e a Tana, mulheres empoderadas muito antes da expressão existir e virar moda; ambas escritoras, ambas multi talentosas — tudo o que eu queria ser quando crescesse.  Ambas se tornaram minhas almas gêmeas e o meu avesso, assim mesmo: junto e misturado. Com elas entendi e vivi o afeto apesar das discordâncias, das discrepâncias, das incoerências. Me tornei mais flexível. Amadureci.

Amadureci, mas não o suficiente para ficar órfã de mãe. Ainda que você, mãe, tenha vivido tanto e já não pudesse mais cuidar de mim; ainda que nos últimos anos tivesse se tornado um pouco minha filha; você estava sempre lá pra mim, por mim. E isso me tranquilizava — era como ter sempre um colo pra onde correr.

Nesses dois meses em que você não está mais por aqui, tenho encontrado na saudade o alento para os temores da orfandade que me assombram desde menina. Foram muitas as vezes, em que criança e mesmo adolescente, entrei pé ante pé no seu quarto em horas de sono,  para checar se você estava respirando. Hoje sinto o seu pulso no piscar das estrelas e me consolo, porque penso que você não está aí sozinha, seja lá esse lugar onde for. Penso que você está aí junto com a tia Dudu, tia Horaida, vó Leopolda, mãe Elzita, Elvira, Tana e as Celinas -- avó e mãe do Luc, seu filhão (assim você disse pouco tempo antes de partir) e meu marido. As Celinas que não conheci, mas que passei a amar pelo que vejo delas nele. E que, tenho certeza, com você e todas essas mulheres maravilhosas, agora olham por mim daí desse lugar, onde quer que ele fique.