Quem sou eu

sábado, 29 de julho de 2017

A hora do espanto / It's time for amazement

“Sabe aqueles dias em que você tem vontade de pintar o cabelo de azul e se mudar para a Prússia?”, ela me perguntou. E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela mesma respondeu: ”…Pois é, estou em um desses dias azuis prussianos”.  E antes que eu tentasse esclarecer, what a hell, é um dia-azul-prussiano, ou, data venia, argumentasse: a Prússia é um país que não existe mais – não com essa denominação, não com a configuração geográfica que originou esse nome… Antes que eu buscasse saber, afinal de contas, quem era eu e quem era ela, aquela que poderia ser qualquer uma das duas, completou: “… E nesses dias assim, só me resta o espanto”.

Imagem Google
“Ahan! Ahan!...”,  reagi num murmúrio, sem entender porra nenhuma. Fui, então, buscar no dicionário o significado de espanto. Desse ato ou efeito de espantar; medo excessivo; susto, terror; admiração, assombro, pasmo; acontecimento imprevisto; alvoroço, surpresa, susto;  tanta coooooisa!... Fiquei confusa. Ficamos eu e a minha natureza lusa, obtusa, ibérica, quase andaluza, sem saber se aquele tal espanto era meu ou dela -- daquela  que trazia a cabeleira em tons de anil e desejava mudar-se para um território já inexistente.

Mas afinal de contas, quem era eu, quem era ela?!

Eu não sabia. Ainda hoje não sei bem... Só lembro que os diálogos emendavam arrebatados, mesmo que, conscientemente, eu não entendesse a metade do que ela dizia. Ela que, ora eu achava que era outra e, em certos momentos, tivesse certeza: era algum pedaço meu, ao qual eu ainda não tinha acesso, falando por mim, se espantando em meu nome. Fosse o que fosse, toda aquela intensidade me tirava do eixo, me desbussolava.

Nós sempre nos encontrávamos nos sonhos, quando ela falava uma língua que eu não entendia e a comunicação acontecia por sinais --  uma espécie de libras telúrico --, ou no espelho, quando a imagem que eu via refletida se recusava a replicar meus gestos e ela (a imagem),  se aproveitando do meu sobressalto silencioso, me desafiava em bom português castiço:

 “Se te dessem os jardins da Babilônia, tu os manterias suspensos? Se tivesses acesso a Alexandria, protegerias a biblioteca do fogo?”

“Huuuum! Haaammm!”, eu engasgava sem resposta. Acabava buscando saídas para a charada em alguma enciclopedia da vida (não,  caríssimos leitores millenials, na época não existia wikipedia; nem internet havia). E as páginas de sabedoria sempre afirmavam:  não há provas que tais jardins realmente existiram -- apesar de os definirem como uma das sete maravilhas do mundo antigo; há dúvidas se foi mesmo um incêndio que apagou do mapa a biblioteca egípcia, até 2015, quando foi reconstruída perto do seu local de origem.

Quebra-cabeças históricos à parte, a verdade é que a convivência e os diálogos com essa figura onírica tiveram impacto durante toda a minha vida. Na primeira infância, me renderam a pecha de menina maluquinha, que, sem pudores ou disfarces, brincava e falava sozinha na frente de todo mundo; na infância tardia, contribuíram para que eu me  ensimesmasse e me trancasse no quarto para encenar as próprias fantasias; na pré-adolescência, me fizeram passar por mentirosa, por contar a todos como fatos aquilo que só eu vivia naquele universo paralelo. Até o dia em que, aos 14 anos, descrevi uma dessas experiências numa redação escolar e me descobri admirada pelo que a professora de Português definiu como “potencial talento literário”. Foi o passaporte para tirar minha suposta amiga invisível da clandestinidade e lhe dar voz – uma voz que todos entendessem e aceitassem; uma voz que passei a reconhecer e a assumir como minha.

Ao longo dos anos, essa voz ganhou potência para traduzir em palavras  muitas das minhas emoções. Algumas viraram livros, outras se materializaram em textos fragmentados. Alguns livros foram publicados, outros, muitos, foram engavetados. Os fragmentos venho resgatando e juntando aqui, neste blog, como quem costura uma colcha de retalhos. Este patchwork que mistura e combina memórias, percepções, reflexõoes, expectativas, saudades, esperanças… E que hoje, na surdina, alinhava o espanto.

“Sabe aqueles dias em que você tem vontade de pintar o cabelo de azul e se mudar para a Prússia?...”
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"Do you know those days when you feel like dyeing your hair blue and moving to Prussia?" She asked me. And before I could say anything, she replied, "... Yeah, I'm on one of those Prussian blue days." And before I tried to clarify, what a hell, it's a Prussian-blue day, or, datavenia, argue: Prussia is a country that no longer exists - not with that denomination, not with the geographical configuration that originated that name ... Before I tried to know, after all, who I was and who she was, the one who could be either one of us, added: "... And in those days, all that remains is my amazement."

"Ahan! Ahan! ... ", I reacted without understanding anything I went to search the dictionary for the meaning of amazement. Of this act or effect of frightening; excessive fear; fright, terror; admiration, astonishment; Unforeseen event; bustle, surprise, fright; So many meanings that I got confused and could not determine if that was my or her astonishment - of the one who wanted the hair dyed in tones of indigo and wished to move to a territory no longer existent.

But after all, who was I, who was she?

I did not know. Even today I do not know well ... I only remember that the dialogues amended with rapture, even if, consciously, I did not understand half of what she said. She who, at one time, I thought was another person, and at certain moments I was sure: it was some part of me, to which I still had no access, speaking for me, amazed on my behalf. Whatever it was, all that intensity took off my axis.

We always met in our dreams, when she spoke a language I did not understand and the communication took place through signs, or in the mirror, when the image I saw reflected refused to replicate my gestures and She (the image), taking advantage of my silent, challenged me in good Portuguese:

 "If you were given the gardens of Babylon, would you keep them suspended? If you had access to Alexandria, would you protect the library from the fire? "

"Huuuum! Haaammm! "I choked without response. I ended up looking for responses in some encyclopedia (no, dear millennial readers, at the time there was no Wikipedia, nor internet). And the pages of wisdom always affirmed: there is no evidence that such gardens actually existed - though they defined them as one of the seven wonders of the ancient world, and there are questions whether it was a fire that erased the Egyptian library from the map until 2015, when it was rebuilt near its place of origin.
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Historical puzzles aside; the truth is that the coexistence and the dialogues with this dream figure have had an impact throughout my life. In my early childhood, they branded me as a crazy girl, who, without disguise, played and spoke alone in front of everyone; In my later childhood, they made me so self-absorbed that I locked myself in the bedroom to stage my own fantasies; In my pre-adolescence, they made me be seen as a liar, since I told everyone as facts what only I was living in that parallel universe. Until the day when, at the age of 14, I described one of these experiences in a school essay and found myself admired by what the Portuguese teacher defined as "a potential literary talent." That was the passport to get my supposed invisible friend out of hiding and give her voice - a voice that everyone understood and accepted; a voice that I came to recognize and to assume as my own.

Over the years, this voice has gained power to translate into words many of my emotions. Some of them became books, others materialized in fragmented texts. Some books have been published, others, many, have been shelved. The fragmented texts became the pieces I have been rescuing and getting together here, in this blog. This patchwork that mixes and combines memories, perceptions, reflections, expectations, hopes ... And that today got a piece of amazement.


"Do you know those days when you feel like dyeing your hair blue and moving to Prussia? ..."

sábado, 15 de julho de 2017

Enfim 60 / Finally 60

Amanhã, faço 60 anos. Cruzo, oficialmente, a ponte que leva a esse território definido como terceira idade e que tantos insistem em proclamar como melhor idade. Melhor pra quem, cara pálida? Pergunto, com ironia, toda vez que deparo com esse  eufemismo. Melhor por quê? Se, na maior parte das vezes, envelhecer significa perder voz e presença no espaço social. Melhor para que? Se viver mais tempo não necessariamente torna-se sinônimo de ganhar novas oportunidades para aprender e se desenvolver -- essa renovação que dá sentido à vida.
 
Nem todas essas perguntas são minhas. Porém, me sinto responsável por formulá-las, à medida que, desde que criei este blog, há exatamente um ano, envelhecimento e longevidade passaram a ser temas  recorrentes de leitura e, nesse mesmo periodo, questões inerentes à maturidade tornaram-se foco permanente de conversas  com centenas de vocês, leitores, que vêm acompanhando meus posts semanais e que, de agora em diante, passarão a ser quinzenais (sempre aos sábados).
Não tivessem vocês abraçado comigo essa jornada blogueira, eu hoje não estaria, aqui, publicando este 52o artigo.

E que jornada!

Nesses doze meses aconteceu de tudo. De ‘um tudo’, como diria, fazendo piada, minha amiga Martita, de quem não tenho notícias há anos, mas cujas tiradas, sempre cheias de humor, vivo repetindo.  A distância não a torna menos querida e repetir suas frases de efeito é uma forma de mantê-la perto.
Então, retomando a narrativa: nesse ano de muitas conversas virtuais, teve de ‘um tudo’!  Houve leitores que me contataram para contar suas histórias e pedir para que as transformasse em posts (o que fiz sempre que identifiquei nelas experiências que pudessem interessar a todos) e houve os que entraram em contato comigo, contaram suas experiências e me pediram sigilo (o que também fiz, embora muitas vezes lamentando não poder compartilhar com todos o que tive o privilégio de ter compartilhado comigo).

Teve jovem dizendo se identificar com o que eu escrevia/escrevo e sugerindo temas para posts futuros e millenials que não pestanejaram em criticar: “só porque curtiu os Pokemóns, já tá se achando, né?!”  Teve até criança,  filho de leitor, que enviou por messenger minha própria foto copiada do perfil do Facebook, pedindo autógrafo para presentear a mãe que, ele dizia: era/é minha fã. Felizmente ele topou minha contraproposta: a de eu assinar uma dedicatória que ele colaria a um retrato seu para dar a mãe. Tempos depois, essa mãe me mandou um messenger cheio de emojis em forma de coração, agradecendo a atenção com o filho. Mãe é sempre igual; mesmo virtualmente, só muda de endereço.

Nesse universo de emoções virtuais, houve leitores que choraram, riram e se identificaram comigo. Leitores que, achando que essas emoções valiam/valem a pena, compartilharam meus posts com as suas redes de relacionamento. Houve também aqueles que me estranharam. Os que, além de não se reconhecerem no que escrevi/escrevo, discordaram/discordam de mim. Muitos até se irritaram, esbravejaram -- como hoje é moda no mundo web -- jurando deletar meu link dos seus bookmarks. Alguns efetivamente apagaram o endereço das suas telas, das suas vidas. Outros se acalmaram e me deram/vêm me dando uma segunda chance; como a gente faz quando briga com alguém que, se não ama, aprecia e/ou, pelo menos, considera.

E aqui estou eu aprendendo a ser blogueira. Ainda me acostumando a lidar com todas essas reações ao que escrevo,  me desafiando a conviver com essa infinidade de perspectivas que as conversas virtuais trazem. Há um ano, quando criei o 2xTrinta, não imaginava que seria, assim, tão rico, tão diverso. Eu completava, então, 59 anos e me via aflita com a chegada aos 60. Pensava na possibilidade de viver mais três décadas e me sobressaltava com a vontade quase adolescente de me aventurar em alguma coisa diferente do que  já realizara até ali. Resolvi escrever o blog para compartilhar essa inquietação. Fui surpreendida pela avalanche de reações que meus desassossegos provocaram.

Hoje, na véspera de me tornar, enfim, sessentona, continuo aflita (rs rs rs). Porém, tenho que reconhecer: um pouco mais em paz com as minhas aflições. Se por um lado ainda não sei o que quero fazer de novo na vida, através do 2xTrinta, tenho constatado: não sou a única sexagenária que anda se peguntando o que vai ser quando crescer.  Como não sei se o tempo que tenho pela frente é de trinta anos, trinta dias, três dias ou três minutos -- ninguém sabe -- às vezes, penso que eu deveria ter pressa em achar respostas e até me cobro. A pressão, porém, não dura cinco minutos.  Aprendi também com este blog que, a despeito do destino, o importante é aproveitar a experiência de percorrer o caminho.

Então, sigo nessa jornada, me permitindo deixar sem respostas as perguntas que abriram este post. E se amanhã, ao apagar minhas 60 velinhas, alguém ousar a me dar as boas-vindas à ‘melhor idade’, não pestajenarei. Perguntarei na lata: melhor pra quem, cara pálida?
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Tomorrow I turn sixty. I officially cross the bridge that leads to this territory defined as the third age and that so many insist on proclaiming as the best age. The best for whom? I ask, with irony, every time I come across this euphemism. Why the best? If, for the most part, aging means losing voice and presence in the social space. The best for what? If living longer does not necessarily mean having new opportunities to learn and grow – those things that make life meaningful.

Not all of these questions are mine. However, I feel responsible for them as, since I created this blog, exactly one year ago, aging and longevity became recurrent themes of reading and, in that same period, issues inherent to maturity became a permanent focus of conversations with hundreds of you, readers, who have been following my weekly posts. Posts that, from now on, will happen bi-weekly (always on Saturdays).
Had not you joined me in this blogger journey, I would never be here today, publishing this 52nd article.

And what a journey!

In those twelve months of virtual conversations everything happened. There were readers who contacted me to tell their stories and asked me to write about them (what I did whenever I found their tales would be of interest of most readers) and there were those who contacted me, told their experiences and asked me to keep them confidential. (What I also did, although often regretting not being able to share with everyone what I had the privilege of having shared with me).

There were young readers who stated empathy with my articles and suggested themes for future posts and there were millenials that did not blink in criticizing: "just because you enjoy Pokémon that does not mean you are young". There was even a boy who explained his mother was my blog follower and, on her behalf, asked me for an autographed photo. Fortunately he agreed in receiving a signed short text he would paste on his own picture to give to his mom. Some time later, his mother sent me a messenger full of heart-shaped emojis, thanking the attention I paid to her son.

In this universe of virtual emotions, there were readers who cried, laughed and identified with me. Readers who, finding sense on these emotions, shared my posts with their networks. On the other hand, there were those who disagreed with everything I wrote and stated they would delete my link from their bookmarks. Some have effectively erased the address from their screens, from their lives. Others have calmed down and have given me a second chance; as we do when we fight with someone who, if we do not love, we appreciate and / or at least consider.

And here I am learning to be a blogger. Still getting used to dealing with all these reactions to what I write, challenging myself to live with the myriad perspectives that virtual conversations bring. A year ago, when I created Twice Thirty, I could not imagine that this would be so rich, so diverse. I was 59 years old and was worried about turning 60. I thought about the possibility of living for another three decades, and got startled by the almost adolescent desire of doing something different from what I had done so far. I decided to write the blog to share my restlessness. The avalanche of reactions it provoked surprised me.

Today, on the eve of, finally, turning sixty, I continue to be afflicted (lol lol lol). But I have to recognize: I am a little more in peace with my afflictions. If on the one hand I still do not know what I want to do in life again, through this blog, I have noticed: I am not the only sexagenarian who is asking herself what she will be when she grows up. As I do not know if the time I have ahead is thirty years, thirty days, three days or three minutes - nobody knows - sometimes, I think I should be in a hurry to find answers. The pressure, however, does not last five minutes. I also learned from this blog that, despite of the destiny, what is important in life is to enjoy the experience of traveling along the way.


So, I continue here on this journey. And as part of it, I allow myself to leave unanswered the questions that opened this post. So, if tomorrow, when I blow my 60 birthday candles, someone dares to welcome me to that 'best age', I will not blink and will ask: best for whom?

sábado, 8 de julho de 2017

Reflexões sobre um nariz de palhaço/ Thoughts about a clown nose

Na tarde fria de São Paulo, um nariz de palhaço aparece, de repente, colado ao vidro lateral do carro, enquanto espero a abertura do sinal – semáforo, farol, como dizem aqui. Em tempos de violência a qualquer hora, por pouco ou quase nada, em todo lugar, me assusto com a esfera rubra que serve de acabamento para a maquiagem burlesca do homem usando peruca vermelha e vestindo jaleco. Ele me sorri e acena com um cartazete dizendo: ‘Somos da ONG Doutores da Alegria. Você pode nos ajudar com pouco”(*).  Olho em volta e vejo outros jalecos brancos, com perucas laranja, azuis, verdes, acenando para os automóveis vizinhos. Tomo coragem e baixo o vidro. Ganho um sorriso e a proposta de colaborar, através da compra de um nariz de palhaço por um real. Saco uma nota de dez e peço dez narizes. Acredito que, assim, me livrarei da culpa. Da culpa pela minha primeira reação diante daquele polichinelo do bem – mais que desconfiada, amedrondada. Da culpa por não estar eu ali, encarnando um palhaço, para vender alegria por alguma causa nobre.

Tolinha!

Há mais o que aprender do que expurgar, concluo, ao deparar com os dez narizes vermelhos amontoados no meu colo. Encaixo um deles sobre o meu próprio e, às gargalhadas que, subitamente, se sobrepõem a minha fala (coisa rara!), me despeço do bufão de cabeleira escarlate que me vendeu o apetrecho.  E gargalhando a bandeiras despregadas -- como diria Fernando Pessoa em um dos seus escritos (**) -- percorro os três quarteirões que me separam de casa, no limite da velocidade permitida.

Hahahahaha!...

Há quanto tempo eu não ria assim e por tão pouco (?), me pergunto, enquanto estaciono o carro na garagem. Como tão pouco pode me fazer vibrar tanto (?), insisto, enquanto tento decodificar essa alegria que rufa no peito, como se ali se inquietassem tambores.

Rataplã! Bum-bum-patigum-bum-prugurundum!,…

Qual seria a onomatopéia correta? Qual seria a tradução precisa para tanta alegria? Para essa emoção que, se a alguma conta-corrente se atrelasse, o extrato nada além registraria: dez reais referentes à compra de dez narizes de palhaço…

Dez narizes e dezenas de gargalhadas. Narizes que acoplados ao meu rosto o tornam bisonho, quase infantil. Risadas resgatadas sei lá onde e que não têm preço, só o apreço de quem ri, acha graça, zomba de si mesmo. E assim age, porque reconhece que nada é tão sério ou tão importante, para valer lágrimas ou noites de insônia. Nada é tão grande, para não escapar dos territórios da melancolia. E se tudo vale a pena quando a alma não é pequena -- reconhecendo novamente a sabedoria de Fernando Pessoa – um simples adereço circense pode, sim, provocar insights, epifanias.

Citações, delírios e pesadelos à parte, sobram os delitos. Esses pecadilhos que remetem às nossas limitações, vulnerabilidades. Qualidades disfarçadas, que se tornam explícitas toda vez que pensamos ser maiores do que nossas próprias pernas; sempre que negamos nosso real tamanho. É com elas que me confronto, agora, quando deparo com minha imagem, refletida no retrovisor do carro, usando um nariz de palhaço. É nelas que reconheço minha alma mambembe, minha inaptidão para o malabaris. É a  partir delas que enceno minha pantomima desvairada -- aquela que não recebe aplausos, se esgueira pelas coxias. E para quem, como eu, mesmo quando criança, nunca foi fã de circo, resta esse aprendizado.  O aprendizado de se reconhecer palhaço para rir de si mesmo.

(*) Doutores da Alegria -- organização da sociedade civil sem fins lucrativos que utiliza a arte do palhaço para intervir junto a crianças, adolescentes e outros públicos em situação de vulnerabilidade e risco social, em hospitais públicos e ambientes adversos.
(**) Fernando Pessoa – Escritor e poeta português (1888 -1935)
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On a cold afternoon in Sao Paulo, a clown nose suddenly appears glued to the side window of the car, while I wait for the green light. In times of violence everywhere, at any time, for little or almost nothing, I feel scared of the red sphere that composes the man's burlesque makeup. He is also wearing a red wig and a lab coat. He smiles at me and waves a note saying, 'we are from the Doctors of Joy NGO. You can help us with little "(*). I look around and see other white coats, with orange, blue, green wigs waving at the neighboring cars. I take courage and open the window. He smiles and says I can help his cause, by buying a clown nose for less than a dollar. I tell him I want to buy ten noses. I believe that doing so I will be free from guilt. The guilt for feeling suspicious of him at first sight. The guilt for not being there as a clown to sell joy for some noble cause.

How fool I am!

There is more to learn than to purge, I conclude, as I stumble across the ten red noses on my lap and fit one of them on my own nose. I say goodbye to the clown and from nothing I start laughing. And laughing I drive through the three blocks that separate me from home.

Hahahahaha! ...

How long haven’t I laughed like this, I wonder, as I park the car in the garage. How such a little thing can make me vibrate that much, I insist, as I try to decode that joy that rattles like drums in my chest.

Rataplan! Bum-bum-patigum-bum-prugurundum!, ...

What would be the right onomatopoeia? How to translate this joy? How to explain such an emotion triggered by the purchase of ten clown noses?

Ten noses and dozens of laughs. A nose that attached to my face makes it look childish. Laughs that make me realize that nothing is so serious or so important to be worth tears or awaken nights. Nothing is so great that cannot escape from the territories of melancholy. And if everything is worth when the soul is not small - as Fernando Pessoa (**) would say - a simple circus props can, yes, provoke insights, epiphanies.

Quotes, delusions and nightmares aside, the small crimes remain. These small sins related to our limitations, vulnerabilities. Those disguised qualities, which become explicit every time we think we are bigger than our own legs; whenever we deny our real size. It is with them that I am confronted, now, when I watch my image, reflected in the car rearview mirror, wearing a clown nose. It is in them that I recognize my fragile soul, my inability to juggle. It is from them that I play my disheveled pantomime - the one that does not receive applause. And for those who, like me, even as a child, have never been a circus fan, there is still this learning: laugh at yourself, as a clown would do.

(*) Doctors of joy - non-profit civil society organization that uses the art of the clown to intervene with children, adolescents and other public in situations of vulnerability and social risk, in public hospitals and adverse environments.

(**) Fernando Pessoa - Portuguese writer and poet (1888 -1935)