Quem sou eu

sábado, 26 de novembro de 2016

Com a Emoção à Flor da Pele / Emotionally Frazzled

“Ando tão à flor da pele, que qualquer beijo de novela me faz chorar". Tomo emprestado o verso da canção de Zeca Baleiro, para expressar o estado de espírito que vem pontuando meus dias. Um misto de frustração e desalento que   me assalta, toda vez que acompanho os absurdos do noticiário.. Uma  combinação de aflição e cansaço que me faz refém da incongruência de fatos consumados. Chacinas delirantes, arrastões desarvorados, tiroteios insones,  estupros com requintes de tortura. Apelos desesperados de pais, mães, filhos, avós -- todos orfãos. Todos vítimas dessa guerra espetaculosa, que, além de deixar uma trilha de cadáveres e corpos mutilados, enche as ruas com a estupefação dos endividados, dos  desempregados, dos esfomeados.

Convivo com esse mosaico de manchetes sangrentas como quem ainda não foi contaminada pela peste que assola um território. Sempre em sobressalto. À espera e à espreita do momento em que também serei atingida e engordarei uma dessas estatísticas tenebrosas. O permanente estado de alerta de quem sabe que, numa situação de calamidade, o privilégio da imunidade tem seus dias contados. Não adianta erguer muros, ou expulsar deformados – tombaremos todos.

E é essa consciência que, paradoxalmente, também me enche de esperança. Saber que a mesma sina está reservada aos que comandam a ordem do dia com seus mandos e desmandos. Acreditar que a determinação da maioria – mesmo que, momentaneamente, silenciosa --  será mais forte e resiliente para derrubar essas agendas pautadas pela incompetência, pela truculência, por interesses espúrios, ou tudo isso junto e misturado. A idade me dá essa confiança; essa sensação de já ter visto este filme antes.  

É verdade que o tempo, muitas vezes, tarda, se alonga muito além do que consideramos suportável. É verdade também que, outras tantas, aquilo que parece ser é tão bom, que vira causa e a ela aliamos nossas esperanças e disposição.  Até que esmaeçem: as causas revelando suas verdadeiras intenções; nossa crença e energia transmutando-se em desilusão.  São os equívocos que todos que escrevemos história (s) cometemos. São os acidentes de percurso, não o destino final.

Porque esse destino, eu sei, eu sinto, mora em algum lugar ensolarado, emoldurado por muito verde e águas cristalinas. Algum endereço abundante em sombreados para refrescar as tardes; profícuo em silêncios para embalar as sestas e despertar cada palavra que precisa ser ouvida. É o chamado lugar ao sol, que tanto almejamos e buscamos. O lugar que, por direito, pertence a cada um de nós – esse cada um que forma todos. O lugar que, de fato, precisamos tornar nosso, para que a ele possamos pertencer, sem as amarras da desconfiança, sem a cegueira da intolerância.

O lugar que um certo escriba garantiu: em se plantando, tudo dá; e que, muitos anos depois, um hino, ouvido às margens plácidas de um certo rio, definiu como pátria amada, idolatrada!  Um lugar que um poeta, que não era gauche na vida, afirmou ter palmeiras onde canta o sabiá e que outro, diplomata, chamou apenas de pátria pobrinha, pátria minha – patriazinha. Um lugar ao qual o maestro e o bardo, em seus exílios, sabiam: voltariam. Voltariam para ouvir cantar as aves que só aqui gorjeiam como em nenhum outro lugar.

Que Caminha, Osório Duque-Estrada, Bilac, Vinícius Tom e Chico me perdoem, mas todas as minhas palavras são poucas para descrever o que vocês, inspiradamente, cantaram em versos. Os versos com os quais cresci, que tanto declamei em saraus e tentei plagiar nas minhas veleidades literárias. Os versos que tatuei na alma, porque me serviram de bússola quando me ensinaram o sentido de pertencimento. Os versos que hoje podem estar até calados, mas cujas métricas despertam com o pulsar dos corações esperançosos como o meu. E se a onomatopéia me permite, aí vai o que o silêncio encerra:

Pum-bum! Pum-bum! Pum-bum!

Será só o meu coração ou há também panelas batendo ao longe?

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I have been so emotionally frazzled, that even a cheesy soap opera love scene makes me burst into tears. Even roughly translated with my friend, Patricia Hausberg’s help, these lyrics still belonging to Zeca Baleiro’s song (*) and I borrow them to describe my last days’ mood.  It has been a mix of frustration and sorrow that prevails every time I follow the news; a combination of fear and exhaustion that makes me a hostage of unbearable facts. Murders, assaults, robberies, rapes. Desperate appeals from fathers, mothers, kids, grandparents – all of them orphans. Victims of this broadcasted war that leaves a trial of corpses and mutilated bodies and fill the streets with in debt, unemployed, starving people.

I live with this mosaic of bloody headlines as those who, living in a place contaminated by a plague, have not been infected yet. Someone who is always in alert, waiting for the moment when one of those tragedies will impact her/his life.  Someone who permanently stays awaken, because she/he knows that the privilege of being immunized does not last when everyone around is not. You can build walls, you can deport deformed people, but nothing of that will work out – we all will be defeated.

Paradox or not, this is what also makes me hopeful. Because I know the same fate is reserved to the ones who currently own the agenda. I believe that what is right for the majority will be stronger and more resilient than the incompetency, the truculence and unethical interests that now guide the ones in charge. It is true that, many times, the right time seems to be delayed (more than what we consider bearable) and that the causes that seem to be right disappoint us. Those are the mistakes that all of us make when writing history/stories. They are accidents not the ultimate destiny.

This destiny – I know, I feel – lives somewhere in a sunny place, surrounded by green forests and crystalline waters. Some quiet place rich in shades to refresh and lull afternoon naps, to offer the silence voices that are begging to be heard need. It is the sunny side we all dream of. The place that, by right, belongs to all of us and, in fact, we need to make ours. It is the only way to build a sense of belonging that prevails over the current mistrust and intolerance.

(*) Zeca Baleiro is a Brazilian composer

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sábado, 19 de novembro de 2016

Velha Demais pra Isso / Too Old for That


Quantas vidas cabem em uma existência?

A pergunta formulada por uma das seis mulheres que compartilham as guinadas que deram em suas vidas,  nos vídeos da campanha publicitária  ‘Velha pra isso’ da Natura (*),  pode não ter sido articulada exatamente com essas palavras, mas o seu significado e a intensidade com que foi proferida me induziram a pensar. A refletir sobre quantas vezes limitamos nossas escolhas, para que elas correspondam a um modelo ideal; quantas vezes reprimimos nossa vontade, para nos enquadrar ao que (achamos) se espera de nós; quantas vezes seguimos a determinação de que há uma idade adequada para tudo.

Sim, a tal da idade certa.

A idade certa para escolher a profissão; a idade certa para fazer faculdade, se formar e começar a trabalhar; a idade certa para se apaixonar, sofrer por amor, deixar de sofrer por amor e se aprumar; a idade certa para achar a pessoa, com P maiúsculo, casar e ter filhos; a idade certa para reconfirmar essa união, com tudo o que ela tem de bom e de ruim; a idade certa para abrir mão do casamento, se divorciar,  vencer o luto da separação e casar de novo (ou não); a idade certa para entrar em crise em relação à primeira profissão e mudar de carreira;  a idade certa para repensar a segunda (terceira, quarta…) opção e começar tudo outra vez; a idade certa para pisar no freio; a idade certa para acelerar…

Sim, assim. Como a se a vida seguisse um só roteiro e a tal da idade certa realmente existisse com todos os tempos precisamente cronometrados. Como se tempo e sentimentos se relacionassem cartesianamente; como se os desejos, as paixões, as inquietações, os medos e as descobertas marcassem data e hora para se manifestar. Como se tudo o que fugisse ao estipulado por essa agenda draconiana fosse ilegal, imoral, ou engordasse. (Só espero que o rei, Roberto Carlos, e o Tremendão, Erasmo,  não me processem pela alusão à letra de uma de suas canções nesse contexto :--D).

Assim, sim. Porque, nesse contexto, não ter dia e hora marcados para tudo implica andar à deriva, como os antigos navegadores, quando perdiam o rastro das estrelas e se viam privados dos ventos. Sua única saída era sobreviver à calmaria, enfrentando o turbilhão de reflexõoes e devaneios que a estagnação sob o sol e sal marinhos impingem. As  a-l-u-c-i-n-a-ç-õ-e-s! Derivações de sonos mal dormidos,  picotados pelo desejo de sonhar além dos calendários.

Talvez tenha sido por conta de uma delas que as minhas escolhas não tenham seguido o roteiro convencional. Aquele que prenunciava minha permanência na pequena cidade onde nasci e cresci, escolhendo uma profissão que fosse exercer ali, me casando e constituindo família com alguém de lá. Tudo na chamada idade certa. Talvez tenha sido uma dessas visões que me fez bagunçar o script, para reescrevê-lo do meu próprio punho, com os garranchos não domados pelas tantas aulas de caligrafia da escola primária. Uma história recheada de espaços para improvisos, que me fortaleceu com o exercício do jogo dos contrários: E se?... Vai saber o que teria sido…

É…, acho que viajei na maionese, com essa reflexãao sobre os diversos caminhos que mapeiam a passagem do tempo. Sobre essa tal de idade certa, que tanto determina e oprime quem a ela se submete e tanto confronta quem contra ela se rebela.  Sobre as personas que encarnei, em submissão e as que me neguei a personificar em rebeldia, ou vice-versa. Sobre ser ou não velha demais para…

… Ainda sonhar com outra profissão, tingir o cabelo de vermelho, me inquietar com o que parece garantido,  usar jeans pra lá de surrados, sentir medo de perder o que parece garantido, pintar as unhas de amarelo-dourado,  brigar pelo que parece garantido, calçar sapatos turquesa-cetim,  garantir, garantir e garantir que nada  está totalmente garantido. Porque tudo é transitório e mesmo aquilo que dura uma vida inteira, muda, se renova.

E já que é assim: que eu tenha coragem. Coragem para rasgar as fantasias, as personas, os fantasmas, as alegorias que usei até aqui; coragem pra recolher os retalhos e reiventar o que vou vestir a partir de agora; coragem para ajeitar os óculos, alcear as sobrancelhas e, independente da idade, mais uma vez, subverter o script. Quem sabe, começando por escrever:  jovem, eeeeu? Jovem, pra que?  Pra que mesmo?!!!!


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How many lives can fit in a lifetime?

The question asked by one of the six women who share the big changes in their lives, through Natura advertisement campaign (*) named ‘Old for that’, may have not used those specific words, but its meaning and intensity made me think. It made me think about how many times we restrict the scope of our choices to correspond to an ideal model; how many times we do not listen to our wishes to fit in what (we think) people expect from us; how many times we follow the assumption that says there is a right age for everything.

Yeah, the right age to chose a profession; the right age to go to college, graduate and start working; the right age to fall in love; The right age to find THE person, get married and have kids; the right age to remake the vows; the right age to divorce, overcome its morning and get married again (or not); the right age to make a career shift; the right age to face a fresh start again; the right age to break; the right age to accelerate…

Yes, a right age for everything, as life had only one script to follow. As time and feelings were related in a Cartesian way; as wishes, passions, fears and discoveries would schedule date and time to happen. As everything that could not fit in this draconian agenda was not acceptable, because it meant sailing without a compass. And we have heard about the hallucinations old sailors used to have, when they got stuck, after losing the track of the stars.

I may have had one of those delusions to say no to the conventional script that was waiting for me. The script that dictated I would remain in my small home town, working on something I could do from there, getting married with someone local and, for sure, having kids. Everything done in the right age. I may have had a big delusion to mess up the whole script and decide to handwrite it again by myself. To build a story with a lot of space to improvise, a story that made me stronger while playing the ‘what if’ game.

Well… I think this process of thinking about the routes that map a lifetime is making me delusional again. Delusional enough to challenge the personas I adopted over time and question if I am (or not) too old for… 
…Dreaming of another profession; dying my hair in red; feeling uncomfortable with what seems to be steady; wearing rotten blue jeans; fearing to lose what seems to be steady; polishing my nails in golden yellow; fighting for what seems to be mine already; wearing turquoise blue shoes; Facing that nothing is steady. Everything is transitory. Even what seems to be steady, changes.

And since it is what it is, I wish me courage. Courage to tear up the costumes and allegories I have wore till today; courage to pull the rennants of stuff together to create my next outfit; courage to put my glasses on and, regardless of my age, mess up the script once again. Who knows, I start by writing:  me, young?  What for?  Young for what?!!!!

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sábado, 12 de novembro de 2016

Com os Dias Contados / With a Deadline


Um…, dois…, três…

A contagem de cada segundo, para desacelerar a respiração ofegante e conter a vertigem que se anunciava, enquanto o médico vaticinava que ela teria pouco tempo de vida, é a memória mais nítida que a amiga que compartilha essa história, na condição de manter-se no anonimato, guarda do momento em que ficou sabendo que o seu encontro com a morte tinha data marcada.

Aos 57 anos, ela, a quem chamarei de L. para facilitar esta narrativa,  ficou sabendo que um câncer silencioso lhe comera as vísceras.  O diagnóstico tardio, que veio como resultado do check up obrigatório exigido às funções executivas na empresa em que trabalhava, foi preciso: se ela se submetesse a uma cirurgia, com subsequentes jornadas de quimio e radioterapias, poderia viver, com sorte, mais três anos.

Um…, dois…, três…

“E se eu não fizer nada disso? Quanto tempo tenho?” – Quis saber ela, depois de  recuperar a respiração.  

Veneza, o destino escolhido por L. para vencer o medo do mar 
“Não posso precisar”— respondeu o médico, visivelmente surpreendido com a objetividade da pergunta. Mesmo assim, arriscou: “Talvez de oito a dez meses…”

“Com autonomia e qualidade de vida?”— ela continuou.

“Hhhaan!…  ” – O médico engasgou.

“Doutor, eu preciso de uma resposta objetiva”— ela insistiu.

“Seis meses”— ele meio que sussurrou.

“QUANTO?!”—Ela perguntou, elevando o tom da voz.

“Seis meses – ele respondeu, finalmente de forma audível – com autonomia e qualidade de vida, não mais que seis meses. Mas,…”

Um…, dois…, três…

L. não se lembra da preleção que sucedeu esse ‘mas’. Na verdade, só se recorda que, ao deixar o consultório, parou na lanchonete da esquina e pediu um sundae. Um colegial completo (**), que não saboreava há pelo menos trinta anos, sob a determinação de manter-se sempre em forma.--  “Quero morrer magra para ser enterrada de biquini”, cotumava brincar… Pois bem, havia chegado a hora! Ao constatar a ironia, resolveu andar. Caminhou os doze quilômetros que separavam o consultório médico de sua casa. E, nessa caminhada, chorou,  berrou, esbravejou, se revoltou contra o destino e sentiu pena de si mesmo. Experimentou, concentradamente – “eu não podia perder tempo!”--, todos os sentimentos que a psicologia clássica identifica como reações inerentes às situações limite como a sua: negação, raiva/revolta, tristeza, resignação. Resignação, sim; só que não. .

“Eu não podia esperar seis meses, um ano, para digerir tudo aquilo” – explica ela. – “Como não consegui aceitar a alternativa de me submeter a uma cirurgia e, em seguida, enfrentar toda aquela via crucis de tratamentos, que, no final, me dariam uma sobrevida sempre espetada em alguma coisa, eu precisava acelerar.”

Acelerar para sentir, lamentar, chorar, se revoltar, se rebelar, entender, se apaziguar e aceitar que tinha uma doença terminal. Acelerar, porque precisava estar pronta. Pronta para morrer em um curto espaço de tempo – seis meses. Pronta para tentar viver o melhor semestre de toda a sua vida.

Um…, dois…, três.

E nos últimos quatro meses, L vem se dedicando exclusivamente a esse projeto – o projeto de felicidade no tempo que lhe resta.  Se demitiu do emprego que tinha há quase vinte anos – “Precisava de espaço pra mim – de mim comigo”, justifica;  doou todo o guarda-roupa de executiva para um bazar de caridade – “Pra alguém há de servir”;  deu sua benção para o  filho abdicar da carreira promissora no mercado financeiro e seguir a vocação de professor – “Quem sou eu pra dirigir a vida dele?”, reconhece;  retomou as aulas de canto que tanto curtia na adolescência – ‘quem canta seus males espanta’, brinca, recitando, quase cantando, o ditado popular.

Nessa sequência de decisões que ela mesmo define como “revolucionárias”,   fez as pases com o ex-marido, com quem havia rompido há dez anos, quando ele confessou estar apaixonado por uma de suas melhores amigas, -- “Ela (a então amiga) o fez pagar em dobro por tudo o que  ele me fez sofrer, não tenho mais o que perdoar”, reconhece;  tingiu o cabelo com mechas azuis –“Eu também tenho o meu lado rock&roll”, revela;  viajou de navio para Veneza – “Precisava vencer o medo do mar e realizar o sonho de alimentar os pombos da praça de San Marco”, explica a escolha do destino; se engajou em um projeto de voluntariado que ajuda mães solteiras-adolescentes da periferia – “Quero contribuir, de alguma forma, para a geração de boas sementes”, e conclui:

“Sementes que florescerão, frutificarão, quando eu não estiver mais por aqui, mas isso já pouco importa”.

Um…, dois…, três…

Se essa constatação não apazigua a ansiedade de saber (e sentir) que o prazo de validade está vencendo, pelo menos consola: “estou fazendo algo bom com o tempo que resta. Um curto tempo, é verdade, porém necessário para que L. pudesse parar e “olhar de frente para a própria existência, se reconciliar consigo mesmo, zerar diferenças com uns e outros e se reaproximar de tantas almas que, como eu, se não são gêmeas, tem muita semelhança com a sua.

Pelos cálculos do médico que diagnosticou seu câncer pela primeira vez e pelo prognóstico das segundas, terceiras, opiniões que confirmaram aquele primeiro veredicto, L. ainda tem dois meses de vida. Mas o que são dois meses, além da fração matemática de sessenta e um dias, 1.464 horas, 87.840 minutos, 5.270.400 segundos?  

“É tempo suficiente”-- ela responde, prontamente.

Suficiente para que ela seja feliz agora, a cada segundo. Ela consigo mesmo; com as coisas que, para ela, fazem sentido,; com aqueles (eu incluída) que ama e que sabe: a amam, apesar de tudo.  Agora, a cada segundo. A cada um dos 5.270.400 segundos que ainda lhe restam.

Um…, dois…, três…

(*) Sundae colegial – popular nas décadas de 50 e 60, é constituido de uma bola de sorvete de creme, uma bola de sorvete de chocolate, uma porção dupla de marshmellow coroada com farofa de castanha.

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One…, two…, three…

Counting each second to breath smoothly and avoid dizziness is the memory my friend L. keeps live from the moment she was told she had an aggressive cancer and would not last much longer.  Keeping her anonymous was the condition to share this story. The story of a 57 year old woman that chose to last less to live better, when the doctor said she would have three years if she accepted to submit herself to a surgery and then to chemo and radio therapies.

One…, two…, three…

“And how long I will last if I do nothing of this?”—She asked.

“I can not precise”—answered the doctor, clearly surprised by that question. Even though, he shared a guess: “Maybe eight to ten months…”

“I mean, how long with autonomy and quality of life?”--  She insisted.

The doctor choked.
“I need a straight answer, Doc”—She continued.

“Six months”—He whispered.

“HOW LONG?”—She repeated the question, raising her voice.

“Six months”—the doctor repeated louder – with quality of life, not more than six months, but …”

One…, two…, three…

L. does not remember what came after that ‘but’. Actually, she only recalls that, after leaving the doctor’s office, she stopped by the first dining at the corner to have a big ice cream. One of those with a lot of marshmallow that she had not eaten for the last thirty years, determined to keep herself in good shape – “I want to die slim to be buried in bikinis”, she has always joked… So, now it was time! And given the irony, she decided to take a walk.

She walked the twelve miles between the doctor’s office and her home. And while she did it, she bursted out crying, whining, weeping, shouting and feeling sorry for herself. In a short period of time, she felt all the emotions the classic psychology defines as natural feelings related to a borderline situation: denial, anger, sadness, and resignation. Resignation, yes; but not exactly. And she explains:

“I could not deal with that in the normal timeframe of six to twelve months. I simply could not afford the time, considering I had not accepted the surgery and the following treatments. So. I needed to accelerate”.

She needed to accelerate to feel whatever she had to feel, to mourn whatever she hat to mourn, to rebel herself against fate,  to understand what a hell was happening, make peace with it and finally accept she had a terminal illness. She needed to quickly get ready. Ready to die in a short period of time – within six months. Ready to live the best six months of her whole life; something she realized she was eager to do.

One…, two…, three…

Ever since, L. has been dedicating all her efforts to the project of being happy in the time she still having. She quit the job she had for twenty years – “I needed space for myself”, she justifies. She gave away all her executive outfits – “They will be useful to someone else”. She encouraged her son to give up the career in the financial market to follow his real vocation: becoming a teacher. She restarted taking the singing classes she loved when she was a teenager. She made peace with her ex-husband after ten years of a harmful divorce – “Well, he fell in love with one of my best friends, but she made him suffer twice than he made me; so, I think we are even”. She dyed her hair in blue – “I also have my rock&roll side”. She took a cruise to Venice – “It was time to overcome my fear of the sea and make real my dream of feeding San Marco square pigeons. She engaged in a social project to help young single mothers from poor communities.

“Somehow, I want to contribute to generate good seeds” – she says. “Seeds that will blossom when I am not here anymore, but that do not matter”.

One…, two…, three…

This awareness may not have helped her avoid the anxiety of knowing time was short, but it balanced her feelings with the perspective she was making the best use of a short life. According to her medical records, now L. has only two months ahead. What are two months beyond the time fraction of 61 days, 1.464 hours, 87.840 minutes and 5.270.400 seconds?

“It is time enough”—she answers promptly.

It is time enough to be happy today and now. To be happy with herself, with what matters to her and with those she loves (me included) and who love her no matter what, at each second – each of her lasting 5.270.400 ones.


One…, two…, three…

sábado, 5 de novembro de 2016

Papo de Bêbado / Drunk Yard's Chat

Dizem que dois bicudos não se beijam. Deve ser por isso que, em boa parte das nossas vidas, eu e meu pai discordamos tanto. Bastava que um tivesse um ponto de vista sobre algum assunto, para o outro ter opinião contrária. E as visões eram sempre tão opostas, que a saída era sempre evitar as discussões, já que nunca se chegaria a um consenso.

 “Melhor deixar pra lá” – minha mãe sempre argumentava, em tom conciliador e temente a um embate.  Até porque, ela sabia:  em sua convicção lusitana-salazarista, meu pai duelaria até a morte para impor sua convicção e eu, na minha posição de ‘filha única-de-português-autoritário-e-fraca-abusada’, não me esquivaria do confronto, apesar das minhas deficiências como esgrimista. Com sua doçura e a tática da conversinha do ‘deixa disso’, ela  persuadia individualmente a mim e a ele a “esquecer a celeuma”.

Meu pai, depois de receber alta e voltar pra casa (foto Luc Bueno)
Celeuma. Palavra antiga, essa. Significado que eu deveria ter exercido e exercitado bem mais cedo no relacionamento com meu pai, mas que pelo bem da convivência famíliar,  fui deixando pra lá.  Fui fazendo de conta que esquecia. guardando pra mim o que sentia e pensava. Como ele --  hoje, sei -- também fazia e guardava. Seguimos assim, bordando nas sombras da insônia o que deveríamos ter dito; documentando em diários imaginários os silêncios que, ao longo da vida, nos mantiveram civilizadamente equidistantes.  Talvez mais distantes do que gostaríamos e/ou pretendíamos;  talvez mais em guarda em relação ao outro do que precisávamos.

Esse misto de sentimentos e reflexões vem à tona, depois de uma semana marcada por sustos.  Meu pai teve que ser internado por conta de uma pneumonia, infecção que, nos seus quase 99 anos, está longe do trivial.  Minha mãe, que é cardiaca, quase teve um ataque, ao constatar que aproveitei sua ausência de casa, ao acompanhá-lo parte do tempo no hospital, para adaptar um dos banheiros às necessidades dele, que hoje é um quase cadeirante. Aos 92 anos, ela se tornou obsessiva na determinação de manter tudo como sempre foi; qualquer alteração na rotina a desestabiliza. E, caramba (!),  a vida, a passagem do tempo, impõe mudanças. Queiramos ou não, gostemos ou não. Mas vai convencer a D.Lydia que 'nada do que foi será', citando aqui Lulu Santos, para imprimir um toque de leveza.

Sobressaltos e malcriações devidamente toureados, devolvemos o casal nonagenário a sua rotina. A sua vidinha de ‘passarinhos’ , em que um não vive sem bicar o pescoço do outro, em que a existência se reafirma em pequenos gestos, como: cochilar de mãos dadas, no sofá, diante da televisão,  tomar um cafezinho ‘passado na hora’, acompanhado de bolo caseiro, ou hidratar as mãos com óleo de amêndoas para tornar o cafuné mais macio.   

E é sob o impacto desses pequenos gestos ainda tão cheios de vida, que abro uma garrafa de vinho para celebrar a semana que superamos. Celebrar e amortecer as aflições que conseguimos deixar para trás – sabe-se lá até quando.  Celebrar e revisitar o inventário das diferenças e semelhanças que sempre tive com meu pai. No meio delas, as lembranças de quando, aos quatro anos,  me enfiava sob a mesa de jantar para ouvir a conversa dos adultos e ali adormecia; acordava sempre resgatada por ele me levando no colo para o quarto. As recordações de quando, aos oito, aprendi a andar de bicicleta, com ele segurando e soltando o selim, e falando baixinho no meu ouvido:”vai, pedala e olha pra frente, que você consegue, você consegue!”.  As memórias das férias de julho,  em que sempre viajávamos juntos; foi numa delas que fizemos um piquenique inesquecível em Paquetá.

As diferenças realmente surgiram a partir da minha adolescência. E eram tão grandes que nos infligiram esse jogo de contrários. Um jogo que parecia sem convergência mesmo no fundo do espelho. Diferenças que nos motivaram a formular a equação binária que, em um momento, nos levou pra longe – ele, aos 15 anos, quando se rebelou contra o pai em Portugal e veio tentar a sorte no Brasil; eu, aos 17,  quando, sem arroubos de rebeldia, mas alinhavando, sim, uma ruptura, saí de Petrópolis para estudar jornalismo no Rio de Janeiro.

E lá ficamos, nos nossos destinos. Cada um no seu tempo. Cada um do seu jeito. Ambos batalhando por seus sonhos e suas convicções. Ambos fincando alicerces, que permitissem provar independência e galgar alturas que possibilitassem almejar infinitos ainda mais longíquos. Ambos, solitariamente, enfrentando a vida que escolhemos.  Até que, um dia, numa esquina qualquer do tempo,  abrimos mão da cordialidade formal e trombamos novamente.  Por algum motivo, já não lembro qual, nos estranhamos e trombamos. Nos espezinhamos e trombamos, E, finalmente, brigamos. Brigamos pra valer, até perdermos o fôlego, até não sabermos mais por que estávamos brigando. E foi nessa ignorância que reconhecemos nossas semelhanças. Recuperamos a ternura de um beijo de boa noite, a intensidade do abraço apertado para matar a saudade. Encontramos, então, no outro aquilo que sempre fomos e somos: dois bicudos. Dois bicudos que hoje se beijam; que, às vezes, ainda se estranham, mas se beijam.


E aqui estamos, agora, apaziguados. Eu, meio embriagada, depois de tomar uma garrafa de vinho e remexer em todas essas emoções; ele, cochilando no sofá, enquanto minha mãe lhe prepara um cafezinho. Registro assim esse papo de bêbado;  para me lembrar do que é essencial, se pelas armadilhas da memória, eu vier a esquecer. 

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People who are too much alike don't play well together, states the saying.  Maybe that’s the reason why in most of our lives my daddy and I have disagreed so much. If one of us had a point of view on a matter, that was enough to make the other think the opposite. And the views were always so different that the best way of dealing with them was avoiding discussions.

“Let it go”—my mom always said to both sides, trying to avoid confrontations and watching over peace at home. She knew that my father, with his sense of authority, would fight to death to impose his point of view and that I would die to not compromise. With her sweet approach, she succeeded in persuading both of us to forget the hubbub.

Hubbub. What an old word. It is as old as the thoughts and feelings I kept in silence over the years to benefit a peaceful family life. Thoughts and feelings – today, I know – he also refrained to pursue the same goal. And we lived most of our lives this way: embroidering the silences that kept us civilized equidistant.  Maybe more distant from each other than we had wanted and/or planned to be. Maybe more defensive with each other than we needed.

This mix of thoughts and feelings pops up right after a scary week. My father had to be interned in a hospital with pneumonia, which is not a trivial infection for his almost 99 years old. My mom, who is 92 and cardiac, almost had a heart attack when she discovered I took the opportunity they were both at the hospital to adapt one of the bathrooms of their apartment to wheelchair users’ needs (my dad is almost invalid). At 92, she is obsessively determined in keeping things as they have always been. For God’s sake (!), life and time demand change, no matter what we want or like. OK, but try to convince Mrs. Lydia  this is true.

OK. With overcame  shocks and alarms, we brought the nonagenarian couple back to their routine. Their ‘little birds’ routine’, in which one does not live without pecking with the bill the other’s neck, in which the existence proves itself through small gestures, such as: taking a nap together in front of the TV set and drinking fresh coffee with a piece of home made cake.

It is under the impact of these small gestures full of life and love, that I open a bottle of wine to celebrate the week we were able to overcome. To celebrate and calm down the afflictions we left behind – only God knows which ones will be the next. To celebrate and revisit the inventory of differences and resemblances I have ever had with my dad. Among them, I find memories. I remember when I was four years old and hide myself below the dinner table to listen to adults ‘conversation, fell to sleep and woke up on my dad’s lap, being carried to bed. I remember when I was eight and he taught me how to ride a bike, holding the saddle and whispering on my ear: “look ahead and pedal, you can make it! Yes, you can!”. I remember when we left together on vacations every July – one of our unforgettable pick nicks happened in one of them.

Actually, our disagreements popped up when I was a teenager. And they were so big that imposed us opposite sides without compromises. The same kind of conflict he had with his father, when he was fifteen and drove him to leave Portugal to build a life in Brazil. The situation that encouraged me, when I was seventeen, to live my hometown to go to an university in a big city (*).

So, both of us met our fates. Each one in its own time. Each one in its own way. Both of us pursuing our dreams and lonely facing our choices. Till the day, at one of those corners life draws to make you stop, we decided to forget the familiar civilized manners to look each other in the eyes. And we argued. We argued, argued and argued, till the moment we were so tired to remember why we were arguing.  Till the moment we looked at each other's eyes, recognized how similar we were and rescued the tenderness of a goodnight kiss, of a hug that says ‘how I missed you!’.

And here we are, now, in peace. Me, a little bit drunk, after a bottle of wine and a dump of emotions; him, taking a nap on the coach while my mom makes coffee. I document here this drunk yard’s conversation to create a reminder of what is essential in life, just in case my memory traps me and erases this week and its emotions from my mind and heart. I simply want to register: I do not want to forget I can play well together with my dad, no matter how similar we are. 

(*) In the seventies this was not common in Brazil 
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