Quem sou eu

sábado, 11 de agosto de 2018

Enfim, 62

Moça! Essa vaga é reservada para idosos!”

A observação do segurança do shopping me surpreende no meio da manobra e é ainda com a ré engatada que saco o cartão de identificação de idoso do porta-luvas para mostrar a ele.
Cheio de autoridade, ele reage:

Imagem Google
“Preciso de um documento de identidade, moça, para comprovar seu direito ao cartão e à vaga”.

A exigência me faz puxar o freio-de-mão, antes de acabar de estacionar o carro. Surpresa e, ao mesmo tempo, confusa com a situação, pergunto:

“Como assim?!”

Zeloso do seu dever, ele explica compenetrado:

“Pra comprovar a terceira idade, moça”.

Ainda duvidando do que estou ouvindo, lhe entrego a carteira de habilitação que, atabalhoadamente, busco dentro da bolsa. Numa fração de segundos, viajo no tempo. Me vejo acendendo o primeiro cigarro, aos 12 anos, para provar a todos e a mim mesma que a infância havia ficado para trás e que eu estava habilitada a frequentar aquele grupo seleto de meninas de quinze que, maduras e experientes - assim me pareciam -  se juntavam no fundo da cantina do colégio para fumar e filosofar. Sim, por incrível que pareça,  o cigarro já foi sinônimo de emancipação e num tempo em que as relações se davam no mundo real - o virtual só existia na imaginação - ele, o cigarro compartilhado, era o passaporte de acesso ao universo adulto.

Volto à época em que, aos 15 anos, respirava fundo, subia num salto alto e me enchia de atitude para entregar o ingresso ao porteiro do cinema, a fim de convencê-lo de que, sim, eu já tinha idade para assistir a um filme proibido a menores de dezoito. E de como, aos dezessete, o batom vermelho, a mecha de cabelo elaboradamente jogada sobre um dos olhos e o vestido preto de veludo molhado eram a caracterização necessária para ter acesso à balada que só as amigas de vinte e um podiam frequentar. Estar com elas ali era a prova irrefutável de que eu já era, sim, uma mulher feita.

Foram poucas as vezes em que, apesar de todos esses esforços, não me pediram o comprovante de identidade para provar que eu tinha a idade compatível para performar baforadas de fumaça na hora do recreio, assistir a duas sessões seguidas de ‘A primeira noite de um homem’ e para dançar de rosto colado a trilha romântica do momento. ‘ I started the joke’...
Em tempos em que Netflix e Sportfy eram delírios de ficção científica, era assim que se atravessava a adolescência. E foram muitas as situações em que, frustrada, humilhada, envergonhada e, em meio à intensidade de tantos outros ‘adas’ típicos da fase teen,  tive que girar nos calcanhares em direção oposta à da cantina do colégio, da sala de cinema ou da boate da vez.

Nessas circunstâncias em que meus disfarces não convenciam e eu era obrigada a aceitar e a assumir minha menor idade, eu espumava revolta e raiva, ao me ver barrada nos portais do mundo adulto; nas passagens para o que eu considerava ser o eldorado. E se, naqueles momentos, alguém me dissesse que chegaria o dia em que eu me divertiria ao ter que comprovar minha senioridade, eu certamente esbravejaria contra ao que, então, pareceria uma reles tentativa de consolo.

A expressão desconcertada do segurança do shopping diante do que lê no meu documento e sua voz titubeante me trazem de volta ao agora.

“Moça, quer dizer...Se-se-senhora - ele gagueja, enquanto me devolve o documento e o cartão  de idoso - me desculpe, mas você, que-quer dizer, a se-senhora não parece”...

“Naaaão?!” - me pergunto em silêncio, enquanto ele inspira e expira para emendar a explicação:

“É que tem muitos jovens que vêem pra cá com o cartão de idoso dos pais, para usarem as vagas e ...”

Minha gargalhada interrompe sua justificativa. Na verdade, o deixa tão sem graça, que ele coloca um ponto final na frase inconcluida. Começa a gesticular, na tentativa de disfarçar o desconforto. Se agarra ao pretexto de ajudar quem acaba de revelar-se 'uma senhorinha' na manobra final para estacionar. Sem conseguir parar de rir, sigo suas instruções até alinhar o carro.

Quando saio do veículo,  ele já não está mais ali. Girou rapidamente nos próprios calcanhares, para livrar-se da saia justa em que julgou ter se metido. Mal sabe a viagem que me proporcionou e o prazer com que agora guardo minha CNH, retoco o batom vermelho e sigo para dentro do shopping. Sim, o batom permaneceu ao longo do tempo; não mais como disfarce, mas como marca registrada. Uma espécie de assinatura de quem não nega mais a idade: sim, senhor, eu tenho 62 anos.