Quem sou eu

sábado, 27 de maio de 2017

Aprendendo com o luto / Learning through mourning

Quanto tempo dura um luto? A pergunta ficou sem resposta, quando, recentemente, reencontrei uma amiga de juventude. Faz nove anos que ela perdeu o marido e companheiro de quase três décadas, e, apesar de nas aparências tudo estar bem obrigada – ela trabalha no que gosta, tem uma convivência saudável com os dois filhos, construiu laços de afeto com os netos e conta com amigos próxinos e fiéis – não há um dia em que a tristeza pela perda do parceiro não lhe devore o fígado.

“É sempre na hora de dormir” – conta ela, assegurando que pelo menos agora o sentimento só se manifesta quando a vida prática se aquieta, mas que houve períodos em que se sentia tão devastada, que não tinha  coragem para sair da cama quando acordava. Chegou a buscar terapia, achando que talvez estivesse ultrapassando as fronteiras da depressão, mas diagnóstico e tratamento passaram longe da prescrição de tarjas pretas: ela  precisava apenas se permitir viver o luto.

Como a morte do marido foi súbida, trágica, e em circunstâncias que, para serem esclarecidas, demandavam uma atitude combativa da família (ele foi baleado letalmente em um assalto), minha amiga praticamente não chorou nos primeiros cinco anos. Teve que ser a voz que clamava por justiça, a mãe que acolhia e consolava os filhos recém saídos da adolescência e a mulher-chefe-de-família que, além de ganhar seu sustento, precisava alicerçá-la emocionalmente.

“Tudo ao mesmo tempo e sem espaço para lágrimas”—afirma.

Foi só a partir do quinto ano, quando finalmente os assassinos do marido foram punidos, a filha mais velha decidiu morar com o namorado e o caçula estudar nos Estados Unidos, que ela começou a se dar conta do “buraco” que a morte do companheiro deixara em sua vida. Um vazio tão superlativo, que tragava o sentido de tudo e lhe exigia um esforço quase sobrehumano para continuar dando conta do cotidiano.

“Achei que eu estivesse pirando – conta – e fui buscar terapia convencida de que antidepressivos e ansiolíticos passariam a fazer parte da minha dieta para a sobrevivência. Aí, percebi como todo aquele turbilhão de demandas que sucedeu a perda do Jonas ocupou o seu espaço; como me agarrei a elas para negar a própria perda e não sofrer com ela”.

Faz só dois anos que minha amiga diz sentir-se realmente viúva. Conta que vem explorando o território do luto em toda a sua extensão e que, ao sair do ‘modo negação’, percebeu que aquela havia sido só a primeira etapa de uma jornada. Uma longa jornada que ainda a levaria à raiva e à revolta – “por que comigo?”— à tristeza profunda – “pobre de mim!” , à aceitação resignada – “tinha que ser assim.” -- e a um estado perene de saudade que conforta, alimenta e acalma, porque busca nas esquinas da memória o que não se perde com a morte.

Minha amiga diz estar na fase em que, apesar da tristeza ainda “bater ponto com intensidade todos os dias”, a resignação e a saudade começam a se revezar com ela na hora de dormir. Diz ter se descoberto uma “pessoa de fé” e que reza todas as noites para que, cada vez mais, a saudade abra suas asas pacificadoras sobre si. Conta que, desde que os netos deixaram de ser bebês e passaram a ter vida própria, tem resgatado lembranças do marido. Seja no olhar de rabo de olho de um, quando quer se assegurar que ela ainda não adormeceu, quando assistem a um filme juntos; seja no jeito sedutor do outro, quando quer convencê-la a comer (e a deixá-lo comer) uma segunda taça de sorvete. Isso tem lhe aquecido o coração e  lembrado como foram pequenas particularidades como essas que tornaram o marido único ao seus olhos. E ela diz:

“Nesses momentos, eu tenho certeza: de onde estiver, Jonas está nos vendo e está sorrindo. Nesses momentos, sei: ele estará sempre comigo”.

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How long does a mourning last? The question came to mind, when I recently met a friend from my twenties. It’s been nine years since she lost her husband and companion for almost three decades, and although she is all well and good in appearance – she loves her work, has a healthy relationship with her son and daughter, has built bonds with her grandchildren and counts on close and faithful friends - there is not a day when she does not feel sad due to her loss.

"It is always in bedtime," she says, assuring that at least now the feeling only manifests itself when the practical life is over. There were periods when she felt so devastated that she did not have the courage to get out of bed when she woke up. She came to seek therapy, thinking that she might be crossing the frontiers of depression, but diagnosis and treatment went far beyond the prescription of black stripes: she needed only to allow herself to live in mourning.

As her husband's death was sudden, tragic, and in circumstances that, in order to be clarified, demanded from the family a combative attitude (he was shot dead in a robbery), my friend practically did not cry in the first five years. She had to be the voice that cried out for justice, the mother who welcomed and comforted her children and the head-of-the-family woman who, in addition to earning her living, needed to be emotionally grounded.

"All at the same time and with no room for tears," she says.

It was only after the fifth year, when the husband's murderers were finally punished, the eldest daughter decided to live with her boyfriend and the youngest to study in the United States, that she began to realize the "hole" that the death of the companion had left in her life – a superlative emptiness.

"I thought I was freaking out," she says, "and I went to therapy convinced that antidepressants and anxiolytics would be part of my diet for survival. Then I realized how all that whirlwind of demands that followed Jonas ‘death occupied his space and how I clung to them to deny my own loss”.

It's only been two years since my friend started feeling like a real widow. She says she has been exploring the territory of mourning in all its length and that, when she left the 'denial mode', she realized that this had been only the first stage of the journey. A long journey that would still lead her to anger  - "why me?" - to deep sadness - "poor me!" – to resignation -- it had to be so" - and to a perennial state of nostalgia that comforts, nourishes and calms, because it seeks in the corners of memory what is not lost with death.

My friend says she is in the stage where, despite sadness ”still hitting the spot with intensity every day," resignation and nostalgia begin to take turns with her at bedtime. She says she found herself a "person of faith" and prays every night so that, more and more, nostalgia will open its peaceful wings on her. She says that since her grandchildren started to have a life of their own, she has rescued memories of her husband. Either in the way one of the grandkids checks if she has fell sleep while watching a movie; either in the seductive way the other tries to convince her to have (and let him have) a second bowl of ice cream. These moments have been warming her heart and reminded her of such small details as the ones that made her husband unique in her eyes. And she says:


"In those moments, I'm sure: wherever Jonas is, he is watching us and smiling and smiling. In those moments, I know: he will always be with me”.   

sábado, 20 de maio de 2017

Tomando palavras emprestadas / Borrowing words



Nas minhas navegadas pela web em busca de temas que inspirem posts para este blog, deparo com a psicóloga  Maria Celia de Abreu, autora do livro  ‘Envelhecer: uma nova paisagem’, que propõe olhar para o envelhecimento pela perspectiva dos sentimentos, em lugar das teorias – o que por si só já ganha minha simpatia. Ela também é fundadora do Instituto para o Desenvolvimento Educacional, Artístico e Científico (IDEAC), onde, há anos, se debruça sobre a maturidade como objeto de estudo e aprendizado. E é entre os videos publicados pelo ideac.com.br e reproduzidos no youtube que encontro sua reflexao sobre  bengalas emocionais. Os pilares que devemos fortalecer ao longo do tempo, para nos sentirmos apoiados nos momentos dolorosos.

Como o video fala por si, eu o compartilho aqui, como um convite à reflexão e um agradecimento à Dra Maria Celia, por definir com tamanha simplicidade o que tantas vezes nos parece complexo. E o que eu nem com mil palavras conseguiria articular. 
https://youtu.be/9D8siB-S3NA
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In my web browsing in search of topics that inspire posts for this blog, I come across the psychologist Maria Celia de Abreu, author of the book 'Aging: a new landscape', which proposes looking at aging through the perspective of feelings, instead of theories - which in itself already earns my sympathy. She is also the founder of the Institute for Educational, Artistic and Scientific Development (IDEAC), where, for years, she has been focusing on maturity as an object of study and learning. And it's among the videos published by ideac.com.br and reproduced on youtube that I find her thoughts on the pillars we must strengthen over time, to feel supported in the moments of pain.

As the video speaks for itself, I share it here, as an invitation to deeply think about its content and a thank to Dr. Maria Celia, for defining with such simplicity what we often find complex. And what I definitely could not articulate with a thousand words.
https://youtu.be/9D8siB-S3NA

sábado, 13 de maio de 2017

Quase clichê / Almost a cliché

Quem tem mãe não tem medo.

Aos 25 anos, quando ouvi essa afirmação pela primeira vez, ela soou mais como frase de efeito do que como máxima que realmente fizesse sentido pra mim. Proferida pela minha xará Veralu Andrade sempre que vencia um novo desafio, a expressão foi se incorporando às conversas do dia a dia e se transformando numa espécie de mantra, na pequena redação onde trabalhamos juntas, na década de oitenta. Era um tal de recitar quem tem mãe não tem medo pra lá e pra cá, que eu mesmo passei a fazê-lo, quase que automaticamente, toda vez que precisava enfrentar os típicos perrengues da minha rotina de jovem repórter.

Minha mãe, D. Lydia, aos quase 93 anos
Foi com o passar do tempo e a superação de perrengues que transcenderam o universo profissional, que fui entender a profundidade da frase. Na verdade, precisei de alguns (muitos) anos no divã do analista para realmente compreendê-la. Para perceber que o meu destemor e a minha determinação diante da vida não haviam nascido numa chocadeira; que a minha sensibilidade vinha de uma base sólida de afeto; que o meu excesso de autossuficiência era só disfarce para quem, precocemente, trocou a proteção do colo materno pelos sustos da vida adulta.

E como era bom aquele colo! Morno, macio, rescendendo a jasmim. Sempre me acolhendo na volta das brincadeiras infantis: ‘Batatinha frita um, dois, três! Mamãe posso ir? Quantos passos?!...’ Sempre pronto para se transformar em cuidados para os meus joelhos permanentemente esfolados: água oxigenada, tintura metiolati e sopradinhas para aliviar a ardência antes de colocar o bandeide sobre o machucado.
Como era bom aquele colo! Rijo, sólido, permanente. Sempre disponível para abraçar meus desasossegos adolescentes, ainda que mal alcançasse o que, para mim, só Clarice Lispector era capaz de traduzir: “Eu não caibo no estreito, eu só vivo nos extremos. Pouco não me serve, médio não me satisfaz, metades nunca foram meu forte!”…  Ah! Aquele abraço! Terno, caloroso, apertado. Sempre dando boas vindas às minhas fortuitas visitas adultas. Sempre disposto a se transmutar novamente em colo, berço, acalanto.

Quanto tempo levei, mãe, para me dar conta de que seu colo é chão, é raiz, é alicerce. Quanto tempo precisei para me reconhecer na sua semelhança, apesar das diferenças. Quanto tempo demorei para voltar pra casa, me sentir em casa, e me reencontrar na casa que cheira a café com leite e pão torrado ao amanhecer.  Ainda bem que deu tempo, mãe. E que hoje, aos quase sessenta anos, eu tenha a felicidade de ainda poder dizer – agora com convicção: quem tem mãe não tem medo.

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 Who has a mother is never afraid.

At age 25, when I first heard this statement, it sounded more like a catch phrase than something that really made sense to me. Delivered by my friend Veralu Andrade, whenever she faced a new challenge, the expression was incorporated into our daily conversations and became a kind of mantra in the small newsroom where we worked together in the eighties.

I only understood the depth of the phrase after many years. In fact, I needed time on the analyst's couch to really understand it. To realize that my fearlessness and my determination  had not been born in a brooder; that my sensitivity came from a solid foundation of affection; that my excess of self-sufficiency was only a disguise for those who, early on, changed the protection of their mother's lap for the scares of adult life.

And how good was that lap! Warm, soft, resembling jasmine. Always welcoming me in the return of children's games. Always ready to take care of my permanently skinned knees: hydrogen peroxide, tincture methiolate and blows to relieve the burning before placing the Band-Aid on the bruise.
How good was that lap! Solid and permanent. Always available to embrace my adolescent restlessness, although it barely reached what, for me, only Clarice Lispector (*) was able to translate: "I do not fit in the strait, I only live in the extremes. Little does not suit me, medium does not satisfy me, and halves have never been my gift! "... Ah! That hug! Suit, warm, tight. Always welcoming my random adult visits. Always willing to transmute again in lap, cradle, and lull.

How long it took me, Mom, to realize that your lap is ground, it's root, and it’s foundation. How long did it take me to recognize myself in your resemblance, despite the differences. How long it took me to come back home, feel at home, and find myself in the house that smells like coffee with milk and toasted bread at dawn. I am glad I could make it in time, Mom. And that today, when I am almost sixty years old, I still can say - now with conviction: who has a mother is never afraid.

(*) Clarice Lispector is a Brazilian writer.