Quem sou eu

sábado, 21 de outubro de 2017

Pequenos delitos, só que não / Small sins, but not that small

“As mulheres são como as águas, juntas se tornam mais fortes”.

Se a imagem que me vem imediatamente à cabeça, ao ler essa frase, é a de uma pororoca (*), a foto de uma moça carregando o cartaz com ela manuscrita, numa manifestação em defesa das mulheres, me faz pensar sobre a forma feminina de exercer essa força. Na verdade, a reflexão foi provocada por esse e outros flagrantes usados pela publicitária Rita Almeida, Head de Planejamento da agência F/Nazca, na palestra sobre empatia a que assisti duas semanas atrás, numa plateia que, empaticamente, juntou mulheres e homens.

Pororoca - Imagem Google
Fiquei pensando sobre esse processo de sair do próprio casulo e se colocar no lugar do outro, que Rita tão bem definiu como ‘empatizar’ e associou à capacidade de cada um de entrar em contato com as próprias vulnerabilidades para, a partir delas, enxergar, acolher, abraçar o outro. Quando toca o feminino, o processo denomina-se sororidade, palavra da qual não consigo gostar, mas cujo significado faz falta no atual cenário de empoderamentos e ressignificados -- termos pelos quais tampouco tenho apreço, apesar de brigar todos os dias para que sejam realidade.  

Porque é no dia a dia que perdemos as oportunidades de nos apoiar e fortalecer como mulheres. Se ao longo da história já demonstramos do que somos capazes em movimentos épicos, como o das sufragistas, no século XIX; o das feministas, no século XX; e o das mães que, ainda hoje, ocupam praças para reclamar o direito de enterrar seus filhos, mortos por ditaduras políticas ou sociais, na vida corriqueira nós, mulheres, nos dispersamos, ao dar lugar à inveja de colegas que profissionalmente são mais bem sucedidas do que a gente;  ao recalque porque a amiga de todas as horas perdeu cinco quilos, enquanto ganhamos seis; ao prazer de constatar que aquela atriz tão insensada ganhou rugas de expressão – ‘o tempo também passou pra ela’, dizem as más línguas, como se isso pudesse atenuar o desconforto de encarar as próprias rugas no espelho…

Pororoca -- Imagem Google
Esses pequenos delitos, que eu mesma, durante muito tempo cometi (ainda cometo, confesso!) e, de forma condescendente e irresponsável, atribuí -- não atribuo mais --  à chamada natureza feminina, resultam do mesmo viés cultural que nos leva a não olhar como descabidos comentários maliciosos sobre mulheres vítimas de violência sexual ou doméstica,  a somar gargalhadas a piadas sobre personagens femininas de uma determinada raça, religião, idade ou gênero, e a usar termos ofensivos à progenitora dos homens que abominamos (às vezes, só amamos e odiamos ao mesmo tempo L).  

Um viés do qual muitas vezes não temos consciência, apesar dele nos acompanhar a vida inteira. Por isso mesmo, ele é tão poderoso e perigoso. Porque faz parte da mesma cartilha que, até o século XIX, nos proibia de votar; até a primeira metade do século XX definia o papel de ‘rainha do lar’ como o único que nos cabia exercer; e que hoje ainda tenta nos tirar o direito de dizer não ao assédio, à violência, à discriminação.

“Que exagero, Vera!”, posso até ouvir algumas vozes contemporizando.

Exagero, não. Apenas uma reflexão sobre quantas vezes, por conta desses desvios  aparentemente inocentes, me distanciei, em vez de me aproximar, de mulheres que tinham tanto para compartilhar e com quem eu, certamente, tinha muito em comum. Perdi a oportunidade de aprender e crescer com elas, de rir junto com elas das nossas limitações, de nos alertamos mutualmente para o que incorporamos desde meninas como pequenos delitos. Sim, porque é preciso estar alerta; prestart atenção a esse inconsciente coletivo que muitas vezes nos faz sair por aí distribuindo beijinhos no ombro, em vez de somar forças e exercer a empatia.

Assim como poetas e maestros abrem mão dos femininos poetisa e maestrina, acho que podemos abrir mão da sororidade para exercer uma só empatia.

(*) Pororoca é o encontro das águas do rio com as do mar. 

……………………………………………………………………………….
Se você gostou deste post, por favor, o compartilhe com sua rede de relacionamentos, clicando em um dos botões que aparecem no rodapé da tradução em inglês abaixo. Se deseja, a partir de agora, receber notificações dos novos posts do blog no seu próprio email, preencha o requerimento no espaço-retângulo logo abaixo do meu perfil, na coluna à direita deste artigo.

……………………………………………………………………………….


 "Women are like water that comes from rivers and the sea; together they become stronger."

An image immediately comes to my mind, while I read this sentence. The image of a pororoca (*). The photo of a girl in a march carrying the poster with that phrase handwritten makes me think about the female way of exercising its strength. In fact, the thought was provoked by this and other examples used by Rita Almeida, Head of Planning of the F / Nazca Ad agency, in her lecture on empathy, which I attended two weeks ago as part of an audience that empathically gathered women and men.

I thought about the process of putting ourselves on the other’s shoes, which Rita so well defined as 'empathizing' and brightly associated with the ability of touching basis with our vulnerabilities to be able to recognize, welcome and embrace the other. When it touches the female world, the process is called sorority, a word I do not like, but recognize: its meaning is lacking in the current scenario of empowerment and re-significations - terms that I do not appreciate either, even though I fight every day to make them a reality.

Because it is in the daily basis that we lose the opportunities to support and strengthen ourselves as women. If, throughout history, we have already demonstrated what we are capable of in epic movements such as that of the suffragists in the nineteenth century, that of feminists in the twentieth century, and that of mothers who still occupy squares today to claim the right to bury their children, killed by political or social dictatorships, we are dispersed in everyday life. We disperse strengths when we give space to the envy of women who are professionally more successful than we are; when we let ourselves be taken by the jealousy because a coworker lost five pounds while we gained six; when we embark in the pleasure of realizing that a famous actress has wrinkles of expression - 'time has passed for her, too,' we say, as if that might lessen the discomfort of facing our own wrinkles in the mirror...

These small sins, which I committed for a long time (still do, I must confess!) and, condescendingly and irresponsibly, attributed (I do not attribute anymore) to the so-called female nature, result from the same cultural bias that leads us to accept mischievous comments about women who are victims of sexual or domestic violence, to laugh at jokes about female characters of a particular race, religion, age, or gender, and to use offensive terms to his mom, when we want to curse a man.

A bias we are often unaware of, even though it is part of our lives for a lifetime. That's why it is so powerful and dangerous. In fact, it is part of the same book which, until the nineteenth century, forbade us to vote; until the first half of the twentieth century defined the role of 'queen of the home' as the only one we had to play; and that today still trying to take away our right to say no to harassment, violence and discrimination.

"What an exaggeration, Vera!" I can even hear some voices temporizing.

It is not. It is just a thought on how often, on account of these seemingly innocent deviations, I distanced myself, rather than approaching, women who had so much to share and with whom I certainly would have much in common. I missed the opportunity to learn and grow with them, to laugh along with them at our limitations, to alert ourselves to what we have incorporated since girls as small sins. Yes, because it is this collective unconsciousness that often makes us fight each other on bullshit, instead of giving our hands to really build strength and empathy.


(*) Pororoca is the meeting of the waters of the river with those of the sea.

sábado, 7 de outubro de 2017

Emoção à flor da pele / Emotionally frazzled


“Ando tão à flor da pele, que qualquer beijo de novela me faz chorar” . Tomo emprestado o verso da canção de Zeca Baleiro, para expressar o estado de espírito que vem pontuando meus dias. Um misto de frustração e desalento que   me assalta, toda vez que acompanho os absurdos do noticiário.. Uma  combinação de aflição e cansaço que me faz refém da incongruência de fatos consumados. Chacinas delirantes, arrastões desarvorados, tiroteios insones,  estupros com requintes de tortura. Apelos desesperados de pais, mães, filhos, avós -- todos orfãos. Todos vítimas dessa guerra espetaculosa, que, além de deixar uma trilha de cadáveres e corpos mutilados, enche as ruas com a estupefação dos endividados, dos  desempregados, dos esfomeados.

Imagem Google
Convivo com esse mosaico de manchetes sangrentas como quem ainda não foi contaminada pela peste que assola um território. Sempre em sobressalto. À espera e à espreita do momento em que também serei atingida e engordarei uma dessas estatísticas tenebrosas. O permanente estado de alerta de quem sabe que, numa situação de calamidade, o privilégio da imunidade tem seus dias contados. Não adianta erguer muros, ou expulsar deformados – tombaremos todos.

E é essa consciência que, paradoxalmente, também me enche de esperança. Saber que a mesma sina está reservada aos que comandam a ordem do dia com seus mandos e desmandos. Acreditar que a determinação da maioria – mesmo que, momentaneamente, silenciosa --  será mais forte e resiliente para derrubar essas agendas pautadas pela incompetência, pela truculência, por interesses espúrios, ou tudo isso junto e misturado. A idade me dá essa confiança; essa sensação de já ter visto este filme antes.  

É verdade que o tempo, muitas vezes, tarda, se alonga muito além do que consideramos suportável. É verdade também que, outras tantas, aquilo que parece ser é tão bom, que vira causa e a ela aliamos nossas esperanças e disposição.  Até que esmaeçem: as causas revelando suas verdadeiras intenções; nossa crença e energia transmutando-se em desilusão.  São os equívocos que todos que escrevemos história (s) cometemos. São os acidentes de percurso, não o destino final.

Porque esse destino, eu sei, eu sinto, mora em algum lugar ensolarado, emoldurado por muito verde e águas cristalinas. Algum endereço abundante em sombreados para refrescar as tardes; profícuo em silêncios para embalar as sestas e despertar cada palavra que precisa ser ouvida. É o chamado lugar ao sol, que tanto almejamos e buscamos. O lugar que, por direito, pertence a cada um de nós – esse cada um que forma todos. O lugar que, de fato, precisamos tornar nosso, para que a ele possamos pertencer, sem as amarras da desconfiança, sem a cegueira da intolerância.

O lugar que um certo escriba garantiu: em se plantando, tudo dá; e que, muitos anos depois, um hino, ouvido às margens plácidas de um certo rio, definiu como pátria amada, idolatrada!  Um lugar que um poeta, que não era gauche na vida, afirmou ter palmeiras onde canta o sabiá e que outro, diplomata, chamou apenas de pátria pobrinha, pátria minha – patriazinha. Um lugar ao qual o maestro e o bardo, em seus exílios, sabiam: voltariam. Voltariam para ouvir cantar as aves que só aqui gorjeiam como em nenhum outro lugar.

Que Caminha, Osório Duque-Estrada, Bilac, Vinícius Tom e Chico me perdoem, mas todas as minhas palavras são poucas para descrever o que vocês, inspiradamente, cantaram em versos. Os versos com os quais cresci, que tanto declamei em saraus e tentei plagiar nas minhas veleidades literárias. Os versos que tatuei na alma, porque me serviram de bússola quando me ensinaram o sentido de pertencimento. Os versos que hoje podem estar até calados, mas cujas métricas despertam com o pulsar dos corações esperançosos como o meu. E se a onomatopéia me permite, aí vai o que o silêncio encerra:

Pum-bum! Pum-bum! Pum-bum!

Será só o meu coração ou há também panelas batendo ao longe?

……………………………………………………………………………….
Se você gostou deste post, por favor, o compartilhe com sua rede de relacionamentos, clicando em um dos botões que aparecem no rodapé da tradução em inglês abaixo. Se deseja, a partir de agora, receber notificações dos novos posts do blog no seu próprio email, preencha o requerimento no espaço-retângulo logo abaixo do meu perfil, na coluna à direita deste artigo.
……………………………………………………………………………….

I have been so emotionally frazzled, that even a cheesy soap opera love scene makes me burst into tears. Even roughly translated with my friend, Patricia Hausberg’s help, these lyrics still belonging to Zeca Baleiro’s song (*) and I borrow them to describe my last days’ mood.  It has been a mix of frustration and sorrow that prevails every time I follow the news; a combination of fear and exhaustion that makes me a hostage of unbearable facts. Murders, assaults, robberies, rapes. Desperate appeals from fathers, mothers, kids, grandparents – all of them orphans. Victims of this broadcasted war that leaves a trial of corpses and mutilated bodies and fill the streets with in debt, unemployed, starving people.

I live with this mosaic of bloody headlines as those who, living in a place contaminated by a plague, have not been infected yet. Someone who is always in alert, waiting for the moment when one of those tragedies will impact her/his life.  Someone who permanently stays awaken, because she/he knows that the privilege of being immunized does not last when everyone around is not. You can build walls, you can deport deformed people, but nothing of that will work out – we all will be defeated.

Paradox or not, this is what also makes me hopeful. Because I know the same fate is reserved to the ones who currently own the agenda. I believe that what is right for the majority will be stronger and more resilient than the incompetency, the truculence and unethical interests that now guide the ones in charge. It is true that, many times, the right time seems to be delayed (more than what we consider bearable) and that the causes that seem to be right disappoint us. Those are the mistakes that all of us make when writing history/stories. They are accidents not the ultimate destiny.


This destiny – I know, I feel – lives somewhere in a sunny place, surrounded by green forests and crystalline waters. Some quiet place rich in shades to refresh and lull afternoon naps, to offer the silence voices that are begging to be heard need. It is the sunny side we all dream of. The place that, by right, belongs to all of us and, in fact, we need to make ours. It is the only way to build a sense of belonging that prevails over the current mistrust and intolerance.