Quem sou eu

domingo, 9 de setembro de 2018

Sobre domingos


A pálida luz do amanhecer se insinua pelas frestas da veneziana. Rompe lentamente a penumbra do quarto, com a delicadeza dourada de um dia que promete ser ensolarado. Na cama, ao meu lado, meu marido ainda dorme profundamente. Ressona, quase ronca. Isso pode parecer pouco poético, eu sei; mas o amor exerce esse efeito transformador na forma como a gente enxerga o outro e, neste momento, o som do seu sono profundo aquece meu coração  No tapete ao lado, Onassis, nosso gato de estimação, ronrona e se alonga "Prrrrrrrrr, Prrrrrrr, Prrrrrrr!' Essa é a manifestação maior da felicidade felina. Ela faz o contraponto perfeito a essa sensação de plenitude que experimento na quietude dessa manhã.

Imagem Google
O domingo vai chegando, assim, em silêncio e preguiçoso. Lá fora, a rua está calada, sem o barulho usual dos carros e o movimento de pessoas indo e vindo. Um passarinho canta ao longe e outro parece responder daqui. Visto da janela, o bairro parece ainda estar dormindo. Um passeador de cães atravessa a calçada em vigília, puxado por doze patas que ele tenta controlar pelas coleiras. Os cachorros brincam entre si e quase o desnorteiam na sua alegria pueril. Um homem aparece no jardim do prédio em frente, para regar e podar canteiros. Não usa chapéu de palha, mas traz um grande regador e torneia os arbustos como se os esculpisse. Uma ciclista cruza a esquina e acena para alguém que não consigo enquadrar no meu ângulo de visão.  Pedala cadenciadamente, debruça-se sobre o guidão, enfrenta o vento que vem ao revés, enverga um capacete verde limão. O neon do capacete reflete o sol. O sol que vai colorindo, fachadas, calçadas, asfalto… Que vai desenhando sombreados, através das árvores -- essas rendas que brincam pelo chão. 

Se as rimas aqui acontecem por acidente e, reconheço: são pobres, esse silêncio recheado de pequenos ruídos me lembra muitos outros domingos. O das tardes desertas, na infância, quando meus pais se recolhiam para dormir a siesta e eu, filha única, sem ter com quem brincar, me refugiava nos livros. O das madrugadas adolescentes, em que voltando das baladas de sábado, entrava pé ante pé em casa e, por mais que não fizesse barulho, sempre encontrava meu pai acordado, para fazer a pergunta da qual eu queria escapar: "Isso são horas?!" O das manhãs cedinho na praia, quando a época de quarar ao sol já havia passado e eu caminhava no calçadão ouvindo gaivotas e respirando maresias.

Domingos. Impossível não lembrar dos versos: 'Hoje é domingo, pede cachimbo, cachimbo é de barro, que bate no jarro, o jarro é de ouro, que bate no touro, o touro é valente, bate na gente, a gente é fraco e cai no buraco, o buraco é fundo, acabou-se o mundo!'. Impossível não cantá-los, enquanto me afasto da janela e vou para a cozinha preparar o café. Um ritual de domingo que o gato acompanha, trançando volteios entre as minhas pernas. Ligo a torradeira, ponho água para ferver, pego a manteiga, a geléia, o requeijão. Vou arrumando a mesa, enquanto esquento o pão e passo o café -- assim mesmo, do jeito antigo, no coador de pano, que minha mãe me deu e cujo manejo me ensinou. "Para garantir o sabor, é preciso misturar o pó na água borbulhante, mexer, esperar levantar a fervura e coar imediatamente", ela dizia. E eu a reencontro, quando reproduzo esses mesmos gestos numa coreografia quase minimalista e sinto o cheiro do café inundar a cozinha. Com que lã se tece a saudade, mãe?  A lã do tempo que passou, eu mesma respondo.

O miado do gato me avisa que meu marido acordou. Ele aparece na cozinha, me dá um beijo, diz que o café está cheiroso e vai pegar os jornais na porta do apartamento.  Sim, somos daqueles que ainda lêem jornal em papel, demoradamente, saboreando o café da manhã. Somos daqueles que cultivam esses rituais analógicos. Rituais que para tantos já se perderam na velocidade digital, mas que nós repetimos e repetimos, com prazer, nessas manhãs silenciosas de domingo.