Quem sou eu

domingo, 14 de outubro de 2018

Quitando promessas

Foi difícil fazer as malas. Foi preciso coragem, para cogitar bater a porta e não olhar pra trás. Agora estava ali, com a mão na maçaneta, pronta para ir. A decisão  demandou dose extra de determinação para não titubear, quando o cachorro deitou dentro da mala aberta sobre a cama e ganiu baixinho, adivinhando o que as roupas dobradas anunciavam. Ela sabia: aquele seria um caminho sem volta. Por isso, se preparara durante meses para trilhá-lo.

Foi se despedindo aos poucos, sem pressa ou ansiedades. A cada dia, sussurrando um adeus: à casa de pé direito alto; ao jardim repleto de samambaias; à sombra da amendoeira debruçada sobre a varanda; aos cheiros vindos da cozinha - café fresquinho, arroz de forno, ambrosia...  
Foi juntando as memórias que tudo aquilo trazia, diligentemente, como quem monta uma colcha de retalhos, um patchwork de emoções; foi bordando cada momento ali vivido, como quem escreve um diário ou organiza um álbum de fotografias. Daqueles que, num tempo analógico, ficavam quase esquecidos num canto da estante, mas que a gente sabia: estavam ali, para aplacar a saudade quando ela nos assombrasse.

Durante oito meses, ela escolheu cirurgicamente o que levaria dali: dois jeans, algumas camisetas, três livros de Clarice (*), uma jaqueta, uma dúzia de calcinhas, dois DVDs do Carlitos, um batom, dois pares de tênis, um vinil de Tom Jobim, uma camisola, um robe de cetim, um castiçal herdado da avó, o xale andaluz presente da mãe, a caixinha de música com a bailarina que ainda rodopia ao som de se essa rua fosse minha... , um balangandã para pendurar no pescoço, outro batom, uma gola de renda guipir, a caneca de porcelana comprada em Paris - Hier ancore j’avais vingt ans/Ainda ontem eu tinha vinte anos... Algumas palavras não ditas, algumas outras engolidas, outras tantas escritas num bloco de notas - cartas sem destinatário.

Aquilo era tudo. Tudo o que cabia na bagagem.  Tudo o que precisava como referência e utilitários  para romper com a promessa do até que a morte os separe, colocar a aliança sobre a cômoda, engavetar os sonhos despedaçados, recolher as cicatrizes e partir. Bater a porta e partir.

Foi. Partiu.


Partiu no silêncio de uma tarde ensolarada de quinta-feira. Silêncio quebrado apenas pelo barulho dos seis tiros que o marido disparou, quando a viu despontar no portão. Cinco para ela e um para si. Todos certeiros. A precisão necessária para matar qualquer possibilidade de recomeço. Pontaria treinada durante oito meses, para garantir o final infeliz. Porque ele, o marido, tinha certeza: aquilo que Deus une o homem não separa e tudo que aqui se faz, aqui se paga.
(*) Clarice Lispector