Minha mãe, não importa a idade, na minha memória |
Sei que eu deveria estar feliz e esperançosa, agradecendo as preces de tantos amigos e familiares que, desde o dia 27 de dezembro, vêm me acompanhando nessa saga. Entretanto, quando olho pra minha mãe, paralisada em um leito de hospital, sem poder falar, alimentada e urinando por sonda, me encarando com seu olhar castanho-aflito-profundo-
Por que ela? Por que nós? Por que eu, que, mais que ateia sou à toa, e cresci ouvindo minha mãe dizer:
“Se o preço de viver muitos anos é ficar presa a uma cama, dependendo de todos pra tudo, prefiro morrer jovem!”
Essa frase causava tamanho efeito em mim, que me lembro dos meus primeiros pesadelos com a orfandade materna, aos oito anos. E era ela quem deles me resgatava. Me acordava com um milhão de beijos (na minha percepção/contas de criança) e promessas veementes de que ela não morreria tão cedo — ou, pelo menos, enquanto eu não estivesse crescida e fosse capaz de ser dona do meu próprio nariz.
O tempo passou, felizmente ela pode cumprir a promessa e eu cresci, segura de que ela estaria sempre ali pra mim e por mim. Chegamos aqui, nesse lugar, onde agora estamos: ela cumprindo o destino que sempre negou e temeu; eu adivinhando sua dor, ao encarar o vaticínio do qual ela sempre desejou esquivar-se.
Desempenho, nem sempre de forma resignada - confesso - esse papel de testemunha e de pré-órfã tardia, aos 60 anos. Sim, porque vamos combinar: essa que dorme imóvel, no leito hospitalar, já não é mais a mãe que, na infância, me livrava dos maus sonhos; que, na minha adolescência, apaziguava as angústias do processo de me tornar gente grande; e que, no início da minha vida adulta, me encorajava a ganhar asas e a voar em busca de quaisquer que fossem meus sonhos...
Nem de longe essa é a mãe que me acompanhou e me deu colo em todos os momentos em que cai, precisei me recolher, chorar, sarar as feridas, me recompor e seguir na luta. Não importa se os tombos aconteceram na chegada aos 30, na transição para os 40, ou no susto de ultrapassar os 50 e alcançar os 60 cuidando dela e do meu pai como duas aves raras e queridas — eles, meus passarinhos.
Não importa, mãe. Você pode parecer não ser mais aquela que fincou os alicerces da minha vida, mas, ao mesmo tempo, te reconheço nessa que, hoje, aqui, quase jaz no leito do hospital e de vez em quando desperta, para me olhar profunda, castanha e silenciosamente. E como isso doi!
Queria eu, mãe, ser onipotente pra te livrar desse pesadelo; queria eu poder me refugiar em alguma fé, para acreditar que você sairá dele é voltará pra casa, como se nada tivesse acontecido; queria eu poder ser grata, por termos chegado até aqui e você continuar, viva, da forma possível — minha mãe possível.
Ah, mãe, eu queria poder tantas coisas!... Mas sou apenas essa que, aparvalhadamente, repete que você não merecia esse purgatório; que chora impotente diante desse seu destino inevitável e que tenta consolar-se com as mesmas palavras que você repetia, toda vez que me via em desalento: vai passar, vai passar.
Me perdoa, mamãe, por eu poder quase nada. Por não poder tocar trombetas de aleluia, pregar que Deus é mais e afirmar cegamente: tudo acabará bem. Por ser apenas essa sua filha, única filha — aflita, assustada e, tantas vezes, revoltada. Essa que, profanamente, suplica para que você sofra o menos possível. Esta que sou eu: a filha possível.
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Translation to English will be published tomorrow, Sunday, Jan 28