Quem sou eu

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A mãe e a filha possíveis / The possible mum and daugther

Minha mãe, não importa a idade, na minha memória
Depois de 28 dias internada numa UTI, por conta de um AVC devastador, que  a acometeu logo após o Natal,  minha mãe recebeu alta para permanecer hospitalizada em um quarto, na quinta-feira passada.

Sei que eu deveria estar feliz e esperançosa, agradecendo as preces de tantos amigos e familiares que, desde o dia 27 de dezembro, vêm me acompanhando nessa saga. Entretanto, quando olho pra minha mãe, paralisada em um leito de hospital, sem poder falar, alimentada e urinando por sonda, me encarando com seu olhar castanho-aflito-profundo-intenso, sem que eu consiga decifrar o que ela tenta me dizer, não consigo celebrar, não consigo agradecer, só consigo perguntar: por quê?

Por que ela? Por que nós? Por que eu, que,  mais que ateia sou à toa, e cresci ouvindo minha mãe dizer:

“Se o preço de viver muitos anos é ficar presa a uma cama, dependendo de todos pra tudo, prefiro morrer jovem!”

Essa frase causava tamanho efeito em mim, que me lembro dos meus primeiros pesadelos com a orfandade materna, aos oito anos. E era ela quem deles me resgatava. Me acordava com um milhão de beijos (na minha percepção/contas de criança) e promessas veementes de que ela não morreria tão cedo — ou, pelo menos, enquanto eu não estivesse crescida e fosse capaz de ser dona do meu próprio nariz.

O tempo passou, felizmente ela pode cumprir a promessa e eu cresci, segura de que ela estaria sempre ali pra mim e por mim. Chegamos aqui, nesse lugar, onde agora estamos: ela cumprindo o destino que sempre negou e temeu; eu adivinhando sua dor, ao encarar o vaticínio do qual ela sempre desejou esquivar-se.

Desempenho, nem sempre de forma resignada - confesso - esse papel de testemunha e de pré-órfã tardia, aos 60 anos. Sim, porque vamos combinar: essa que dorme imóvel,  no leito hospitalar, já não é mais a mãe que, na infância, me livrava dos maus sonhos; que, na minha adolescência, apaziguava as angústias do processo de me tornar gente grande; e  que, no início da minha vida adulta, me encorajava a ganhar asas e a voar em busca de quaisquer que fossem meus sonhos...

Nem de longe essa é a mãe que me acompanhou e me deu colo em todos os momentos em que cai, precisei me recolher, chorar, sarar as feridas, me recompor e seguir na luta. Não importa se os tombos aconteceram na chegada aos 30, na transição para os 40, ou no susto de ultrapassar os 50 e alcançar os 60 cuidando dela e do meu pai como duas aves raras e queridas — eles, meus passarinhos.

Não importa, mãe. Você pode parecer não ser mais aquela que fincou os alicerces da minha vida, mas, ao mesmo tempo, te reconheço nessa que, hoje, aqui, quase jaz no leito do hospital e de vez em quando desperta, para me olhar profunda, castanha e silenciosamente. E como isso doi!

Queria eu, mãe, ser onipotente pra te livrar desse pesadelo; queria eu poder me refugiar em alguma fé, para acreditar que você sairá dele é voltará pra casa, como se nada tivesse acontecido; queria eu poder ser grata, por termos chegado até aqui e você continuar, viva, da forma possível — minha mãe possível.

Ah, mãe, eu queria poder tantas coisas!...  Mas sou apenas essa que, aparvalhadamente, repete que você não merecia esse purgatório;  que chora impotente diante desse seu destino inevitável e que tenta consolar-se com as mesmas palavras que você repetia, toda vez que me via em desalento: vai passar, vai passar.

Me perdoa, mamãe, por eu poder quase nada. Por não poder tocar trombetas de aleluia, pregar que Deus é mais e afirmar cegamente: tudo acabará bem. Por ser apenas essa sua filha, única filha —  aflita, assustada e, tantas vezes, revoltada. Essa que, profanamente, suplica para que você sofra o menos possível. Esta que sou eu: a filha possível.

.....................................................................................................................................................
Translation to English will be published tomorrow, Sunday, Jan 28


sábado, 13 de janeiro de 2018

Os cem anos possíveis / The possible centennial


Ontem, meu pai fez cem anos. Ao contrário do que eu vinha planejando, não celebramos seu centenário com o almoço para cem pessoas de diferentes gerações, que, de alguma forma fizeram/fazem parte da vida dele. Minha mãe caiu seriamente doente, foi hospitalizada pouco antes da véspera de Ano Novo e isso determinou a mudança de planos. 

Meu pai, cem anos e um dia -- Foto: Vera Dias
Das dez décadas que meu pai viveu até aqui, mais de seis foram ao lado da minha mãe. Os dois têm mais tempo de vida juntos do que já viveram sozinhos. E nessa jornada de companheirismo, um sempre viveu em função do outro. Faz tempo que os defino como ‘meus passarinhos’ e que testemunho: sua alegria de viver está relacionada às pequenas rotinas em conjunto — aspergir água no outro, depois de molhar as penas ao beber água; comer alpiste junto na mesma cumbuca; bicar o cangote quando o outro dorme ou está distraído, simplesmente para dizer —Oooii! Eu estou aqui!
Meu pai e minha mãe um ano atrás 

As rotinas podem não ser exatamente essas, mas me lembram esses rituais de piriquitos em viveiros. Não me recordo mais, quando comecei a vê-los assim. Em que momento, precisamente, eles deixaram de ser meus pais, para se tornarem meus filhos — um processo que se intensificou nos últimos três anos e que fui, apavoradamente, abraçando, assumindo. Logo eu, que nunca quis filhos... 
Só sei que quando me dei conta, já estava assim: tomando providências para que não faltasse água, nem alpiste; para que a luz e o calor do sol alcançassem a gaiola na hora e intensidade certas; para que atenção e carinho estivessem sempre presentes. 

Aprendi a.tomar conta. Ainda que contratando cuidadoras-anjos-da-guarda, para preservar-lhes a casa onde sempre viveram, a rotina que com os anos avançando serviu como ancora. Ainda que estando muitas vezes ausente, para ganhar um dinheiro a mais, a fim de garantir esse ninho. Porque minha mãe sempre disse: quem ama cuida. Eu diria que, tendo que cuidar, descobri conjugações do verbo amar que até então desconhecia. 

E foi conjugando esse verbo, que ontem celebrei o centenário do meu pai. Comemoramos não da forma desejada e planejada,  e que definitivamente ele merece, mas da forma possível. Apesar da ausência da minha mãe, apesar da saudade que sentimos dela, apesar de todos os pesares. Afinal, como disse meu pai, antes de apagar as velinhas: “são cem anos e eu ainda estou vivo”. 

...........................................................................................
Yesterday, my father completed one hundred years old. Despite of what I had been planning, we did not celebrate his centennial with a lunch for one hundred people of different generations, who somehow were / are part of his life. My mother fell seriously ill, was hospitalized shortly before New Year's Eve and that determined the change of plans.

Yesterday, we just gathered a few friends around for a piece of cake. We did it for him, for her, who would never agree not to celebrate this moment, and for me - that I am here trying to manage this mix of emotions, which brings sadness, longing, frustration, uncertainty and fear about the future.

Of the ten decades my father has completed, more than six he lived in my mother's side. The two of them have more time together than they have ever lived alone. And in this journey of fellowship, one always lived by the other. I have long defined them as 'my little birds' and could see: their joy of living is related to the small routines they follow together - sprinkling water on the other, after wetting the feathers when drinking water; eat canary seed together in the same bow; Peck when the other sleeps or is distracted, simply to say: Hi!! I am here!

The routines may not be exactly these, but they remind me of these rituals of parakeets in nurseries. I do not remember when I started seeing them like this. At what point, precisely, they have ceased to be my parents, to become my children - a process that has intensified in the last three years and which I have been terrifyingly embracing, assuming. Me, who never wanted to be a mother ...
I only know that when I realized it, it was already this way: taking care that there was no shortage of water or canary seed; so that the light and heat of the sun reached the cage at the right time and intensity; so that attention and affection would always be present.

I learned how to take care. Although hiring caretakers-guardian angels, to preserve the house where they have always lived, the routine that with the years advancing served as an anchor. Although not being present all the time, as I needed to make money to afford and secure this nest. Because my mother always said: who loves cares. I would say that, having to take care of them, I discovered  how to conjugate  the verb to love in ways I have never known till then. 


And it was conjugating this verb, that yesterday I celebrated my father's centennial. We celebrated it not in the desired and planned way, and that definitely he deserves, but in the possible way. Despite my mother's absence, despite our homesickness, despite all the regrets. After all, as my father said, right before we started singing happy birthday to him:  "I am one hundred years old and still alive."