Quem sou eu

sábado, 24 de março de 2018

Quase Invisível

Todas as manhãs ela me recebia com um sorriso tímido e, depois de me dar bom dia, informava que a máquina de café já estava carregada. Eu enchia a minha caneca de capuccino e ficava ali bebericando,  olhando pela vidraça o amanhecer sobre São Paulo, enquanto ela acabava de arrumar os utensílios da pequena copa anexa ao andar e me perguntava:

“Aceita uma torrada, ou um pão na chapa? “

Imagem Google
Raramente eu aceitava, mas agradecia sua preocupação em me servir alguma coisa, apesar da sua prioridade ser deixar a copa em ordem.

Nós éramos sempre as primeiras a chegar ao escritório. Ela, porque precisava deixar tudo pronto para a hora em que todos chegariam;  eu, porque era (ainda sou) ansiosa mesmo e queria sempre começar logo o que tinha para fazer. Razões à parte, esse ritual quase silencioso, que pontuava o início das nossas jornadas, nos aproximava, ainda que não soubéssemos nada uma da outra.

E por um bom tempo foi assim:

“Bom dia”.

“Bom dia”.

“ A máquina do café já está carregada”.

“....”

“Aceita uma torrada, ou um pão na chapa?”

“Não obrigada ”...

Até o dia em que entrei na copa e não a encontrei. Deparei com um rapazote barulhento,  que balançava o corpo no ritmo do que ouvia pelos fones de ouvido - funk? Sertanejo? — abria e fechava os compartimentos da máquina de café visivelmente irritado,  sem saber onde colocar o quê, e mal me olhou quando perguntei pela moça.

“Moça?”

“É. A moça que fica aqui no café” — respondi, me dando conta de que nunca havia perguntado o nome dela.

“Ah! A Dila?!... Foi atropelada, ontem à noite, por um ônibus, quando ia pra casa e morreu!

“...MoRREU?!”

“É. Morta, sim” — repetiu ele, como se respondesse a uma pergunta trivial.

Naquele momento, não sei o que me chocou mais: se o tom despreocupado daquele garoto estabanado, ao me dar aquela notícia, horrível, ou a própria circunstância da morte brutal e repentina, que me fazia tatear num turbilhão de perguntas: será que ela deixou filhos? Como estará a família?...

E foi na tentativa de obter respostas, que descobri que Dila Maria dos Santos, 42 anos, era sozinha. Vivia num quarto alugado, nos fundos de uma casa de família, em Itaquera (zona leste de São Paulo), e sua rotina consistia em casa-trabalho-casa, de segunda a sexta; tanque lavando a roupa da semana, no sábado (não só a sua, mas a de toda família, como parte do aluguel do quarto); e, domingo, pegando sol no quaradouro, pra evitar que Alfredo, o gato do vizinho, enchesse de pelos o que tivera tanto trabalho para limpar. A grande diversão  acontecia nas sextas, quando, no caminho de casa, comprava uma cerveja e dois pedaços de pizza, para celebrar o fim da semana.

Dila morreu tentando voltar para o quartinho, do qual cuidava como casa. Deixou uma tevê 21 polegadas, meia dúzia de roupas penduradas numa arara – o quarto não tinha armário, uma poltrona bergère que mal cabia no cômodo minúsculo, um robe de cetim que um dia fora vermelho-escarlate e uma caixinha-de-música antiga,   sobre a qual uma bonequinha-bailarina rodopiava freneticamente ao som de…

… Frère Jacques, frère Jacques, dormez vous, dormez vous…

A caixinha que me pareceu preciosa e que coloquei no caixão, quando vesti Dila com o robe quase escarlate para a sua viagem final. Sim, eu fiz isso. Já que não havia parentes, nem amigos, só o senhorio do quartinho cobrando o aluguel que venceria em dois dias, me senti no direito e no dever de reverenciar aquela mulher tão sozinha. A moça do café, cujo nome eu nunca soubera e cuja vida desconhecera enquanto ela viveu. A moça com quem, durante muito tempo, compatilhei a intimidade de tantos silêncios. Os silêncios que colocavam ponto final a minhas noites sobressaltadas por pesadelos. Os silêncios que me serviam como rito de passagem para iniciar o dia. Os silêncios pontuados pela voz mansa da moça que, todos os dias, no meio dos seus afazeres, me oferecia, gentilmente, uma torrada ou um pão na chapa, para acompanhar o cappuccino que eu saboreava enquanto contemplava o amanhecer sobre São Paulo. 








sábado, 10 de março de 2018

Sobre Ausências / About Absences



Em falta. Tão em falta quanto o sabão líquido preferido que sumiu das prateleiras do supermercado e quando você pergunta ao atendente, ele te diz: Ah! Tá em falta!


A brincadeira que meu marido faz para me dizer que ando correndo demais, trabalhando demais, e  dando atenção de menos a ele, ao nosso gato, ao nosso jabuti, ao nosso pequeno jardim, enfim, a nossa vida juntos, não provoca a gargalhada esperada.  Nessa manhã chuvosa, em que cronometro os minutos, para me fazer apresentável, ir ao médico e depois correr para o trabalho, a única coisa que consigo escutar é que estou em falta. E isso me faz refletir sobre onde mais ando deixando a desejar. A lista não é pequena.

Ando em falta com a minha mãe, que há 70 dias tenta se recuperar de um AVC, hospitalizada em outro estado, e que só consigo visitar mensalmente. O trabalho e o sustento da família estao em São Paulo e por mais que o coração aperte e a culpa martele a minha cabeça, não há resistência física e bolso que sustentem ponte-aéreas todo fim de semana. 

Ando em falta com o meu pai, que, aos cem anos e depois de 62 de vida compartilhada com ela, tenta se acostumar com a sua ausência, agarrado à esperança de que um dia ela voltará pra casa como se nada tivesse acontecido. 

“Sei que irei à Fátima pagar a promessa pela recuperação dela”, afirma ele, nos momentos de otimismo. E quem sou eu pra dizer a esse senhor centenário que a sua determinação fervorosa não passa de uma ilusão? Me sinto em falta. Em falta com a fé que consola meu pai. Em falta com qualquer credo que mitigue esse meu desalento. 

Em falta. Ando em falta com meus amigos. Esqueci do lançamento do livro da amiga querida, que teve a coragem de  trilhar um novo caminho profissional aos 62 anos. Não retornei a ligação do amigo que acabou de ser demitido e está precisando de apoio. Ainda não consegui marcar o almoço com a amiga que retornou de um longo período no exterior, de quem senti tanta saudade e com quem tenho tanto para trocar. 

Ando em falta com as caminhadas que costumava fazer e que além de movimentar as articulações do meu corpo, me alimentava a alma com os devaneios que só são possíveis quando esvaziamos o pensamento para focar no agora. Um passo de cada vez, aqui e agora. Quase um mantra de meditação. Oooooonnnn!

Em falta. Estou em falta comigo, porque tudo Isso junto e misturado me faz muita falta. Se materializa nessa saudade intensa e permanente que me acompanha a cada dia, todos os dias. Saudade do meu pai, da minha mãe, dos meus amigos, dos meus pequenos rituais de relaxamento. Saudade de estar mais presente nas vidas do meu gato, do meu jabuti e, sobretudo, do meu marido que, amorosa e pacientemente, sempre me acolhe e abriga no retorno das minhas ausências. No aconchego do seu abraço sempre agradeço por estar em casa. E como é BOM (com maiúsculas) ter uma casa para voltar, depois de tantas ausências.
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Lacking. As missing as the favorite liquid soap that has disappeared from the shelves of the supermarket and when you ask the clerk, he simply says: Ah! It's missing!


The joke that my husband makes to tell me that I'm rushing too hard, working too much, and giving less attention to him,  to our cat, to our turtle, to our little garden, in short,  to our life together, does not cause the expected laughter. In the rainy morning, when I clock the minutes, to make myself presentable, go to the doctor and then run to work, the only thing I can hear is that I'm missing. And that makes me reflect on where else I am not corresponding to the expectations. The list is not small.

I'm missing my mother, who has been trying to recover from a stroke for 70 days, hospitalized in another state, and that I can only visit on a monthly basis. The work and livelihood of the family are in Sao Paulo and no matter how much my heart squeezes and the guilt hammers my head, there is no physical resistance and pocket that can afford shuttles every weekend.

I'm missing my father, who, at the age of 100 and after 62 years of life shared with her, tries to get used to her absence, clinging to the hope that one day she will return home as if nothing had happened.

"I know I'm going to Fatima to pay the promise for her recovery," he says in optimistic moments. And who am I to tell this hundred year old gentleman that his fervent determination is an illusion? I miss it. I miss the faith that comforts my father. I miss a belief to mitigate my discouragement.

Lacking. I'm missing my friends. I have forgot the book launch of my dear friend who has had the courage to take a new career path at age  of 62. I did not return the call from the friend who has just got fired and is in need of support. I still can not book lunch with my friend who has returned from a long period abroad, whom I have missed so much and whom I have so much to change.

I miss the walks I used to do and that in addition to moving the joints of my body, fed my soul with  daydreams that are only possible when we are able to empty our heads of thoughts to cease the moment. One step at a time, here and now. Almost a meditation mantra. Oooooonnnn!

Lacking. I'm missing myself, because all of this together is part of me. It materializes in this intense and permanent longing that follows me each day, every day. I miss my father, my mother, my friends, my little rituals of relaxation. I miss being more present in the lives of my cat, my jabuti and, above all, my husband who, lovingly and patiently, always welcomes and shelters me back from my absences. In the warmth of his embrace, I always feel grateful for being at home. And how GOOD (in caps) it is to have a home to return to after so many absences.