Todas
as manhãs ela me recebia com um sorriso tímido e, depois de me dar bom dia,
informava que a máquina de café já estava carregada. Eu enchia a minha caneca
de capuccino e ficava ali bebericando, olhando pela vidraça o amanhecer
sobre São Paulo, enquanto ela acabava de arrumar os utensílios da pequena copa
anexa ao andar e me perguntava:
“Aceita
uma torrada, ou um pão na chapa? “
Imagem Google |
Nós
éramos sempre as primeiras a chegar ao escritório. Ela, porque precisava deixar
tudo pronto para a hora em que todos chegariam; eu, porque era (ainda
sou) ansiosa mesmo e queria sempre começar logo o que tinha para fazer. Razões
à parte, esse ritual quase silencioso, que pontuava o início das nossas
jornadas, nos aproximava, ainda que não soubéssemos nada uma da outra.
E
por um bom tempo foi assim:
“Bom
dia”.
“Bom
dia”.
“ A
máquina do café já está carregada”.
“....”
“Aceita
uma torrada, ou um pão na chapa?”
“Não
obrigada ”...
Até
o dia em que entrei na copa e não a encontrei. Deparei com um rapazote
barulhento, que balançava o corpo no ritmo do que ouvia pelos fones de
ouvido - funk? Sertanejo? — abria e fechava os compartimentos da máquina de
café visivelmente irritado, sem saber onde colocar o quê, e mal me olhou
quando perguntei pela moça.
“Moça?”
“É.
A moça que fica aqui no café” — respondi, me dando conta de que nunca havia
perguntado o nome dela.
“Ah!
A Dila?!... Foi atropelada, ontem à noite, por um ônibus, quando ia pra casa e
morreu!
“...MoRREU?!”
“É.
Morta, sim” — repetiu ele, como se respondesse a uma pergunta trivial.
Naquele
momento, não sei o que me chocou mais: se o tom despreocupado daquele garoto
estabanado, ao me dar aquela notícia, horrível, ou a própria circunstância da
morte brutal e repentina, que me fazia tatear num turbilhão de perguntas: será
que ela deixou filhos? Como estará a família?...
E
foi na tentativa de obter respostas, que descobri que Dila Maria dos Santos, 42
anos, era sozinha. Vivia num quarto alugado, nos fundos de uma casa de família,
em Itaquera (zona leste de São Paulo), e sua rotina consistia em
casa-trabalho-casa, de segunda a sexta; tanque lavando a roupa da semana, no
sábado (não só a sua, mas a de toda família, como parte do aluguel do quarto);
e, domingo, pegando sol no quaradouro, pra evitar que Alfredo, o gato do
vizinho, enchesse de pelos o que tivera tanto trabalho para limpar. A grande
diversão acontecia nas sextas, quando,
no caminho de casa, comprava uma cerveja e dois pedaços de pizza, para celebrar
o fim da semana.
Dila
morreu tentando voltar para o quartinho, do qual cuidava como casa. Deixou uma
tevê 21 polegadas, meia dúzia de roupas penduradas numa arara – o quarto não
tinha armário, uma poltrona bergère
que mal cabia no cômodo minúsculo, um robe de cetim que um dia fora vermelho-escarlate
e uma caixinha-de-música antiga, sobre
a qual uma bonequinha-bailarina rodopiava freneticamente ao som de…
… Frère Jacques, frère Jacques, dormez
vous, dormez vous…
A
caixinha que me pareceu preciosa e que coloquei no caixão, quando vesti Dila
com o robe quase escarlate para a sua viagem final. Sim, eu fiz isso. Já que
não havia parentes, nem amigos, só o senhorio do quartinho cobrando o aluguel
que venceria em dois dias, me senti no direito e no dever de reverenciar aquela
mulher tão sozinha. A moça do café, cujo nome eu nunca soubera e cuja vida
desconhecera enquanto ela viveu. A moça com quem, durante muito tempo,
compatilhei a intimidade de tantos silêncios. Os silêncios que colocavam ponto
final a minhas noites sobressaltadas por pesadelos. Os silêncios que me serviam
como rito de passagem para iniciar o dia. Os silêncios pontuados pela voz mansa
da moça que, todos os dias, no meio dos seus afazeres, me oferecia,
gentilmente, uma torrada ou um pão na chapa, para acompanhar o cappuccino que
eu saboreava enquanto contemplava o amanhecer sobre São Paulo.