Quem sou eu

sábado, 21 de abril de 2018

Sem Selfies


“Eu vou sentir saudades disso!”

A reação do meu colega de trabalho à piada que surgiu, ali, espontaneamente, no calor da conversa de um almoço de sexta-feira, interrompeu a gargalhada coletiva e fez todos imediatamente perguntarem:

“Você está se despedindo?”

“Naaão! - ele se apressou em responder. - Só estou prestando atenção nesse momento, porque sei que vou sentir falta dele”. 

Imagem Google

E eu me dei conta que também sentiria. Porque ali, naquele pequeno restaurante de bairro, degustando nossas taças de Chardonnay, saboreando tartares e dando muita, muita risada juntos, estávamos compartilhando um momento perfeito. Um momento feliz.

Tão feliz, que ao lembrar dele enquanto escrevo este post, as lágrimas se antecipam antes que eu me dê conta de que estou com vontade de chorar.  É verdade que ando um tanto chorona ultimamente, mas, ainda assim, isso  me remete a outros pequenos momentos em que, ao longo da vida, experimentei a mesma sensação daquela sexta-feira ensolarada no meio de uma jornada de trabalho.

Momentos triviais como o do café com croissant, que sempre marcava a minha saída do analista e durante o qual, inexoravelmente, eu compreendia algo que ela dissera na sessão (sim, a psi era mulher). E não foram poucas as vezes em que tive vontade de voltar imediatamente ao consultório para discordar dela veementemente. Foram muitas as que pensei em fazer isso, para dizer simples e humildemente: sim, você tem razão. Um dia durante uma sessão lhe contei sobre esses insights e os ímpetos que eles provocavam. Rimos as duas, quando, no momento seguinte, ela mencionou algo que não entendi e falamos ao mesmo tempo: talvez durante o café... Esse diálogo se tornou recorrente durante os vinte anos em que fiquei naquele divã. E eu sabia, no momento em que acontecia: eu iria sentir saudade, muita saudade, dele.

Pequenos momentos. Pequenos e hilários, como o da sessão de cinema, da qual eu e minha amiga Bel saímos às gargalhadas quinze minutos antes de terminar,  enquanto toda a plateia soluçava, porque antecipáramos palavra por palavra o melodramático diálogo final; ou o do seminário que, ainda repórter, fui cobrir com outra amiga querida. Para escapar de um admirador que a perseguia, ela deu a desculpa de que estaria trabalhando o sábado inteiro. Qual não foi a surpresa quando deparamos com o sujeito sentado no auditório do seminário, dando adeusinhos pra ele e fazendo perguntas à mesa debatedora?  O amor é lindo, pensamos olhando uma para a outra e não conseguimos parar de rir durante a primeira hora do evento. Em ambas as situações, eu sabia: sentiria saudades, muitas saudades, daquelas risadas.

Saudades antecipadas de momentos únicos, como os que compartilhei silenciosamente com minha mãe, quando ela se sentava para fazer consertos em minhas roupas e eu ficava, ali ao lado, só observando sua expressão concentrada e amorosa alfinetando bainhas, repregando botões, alinhavando colchetes. Foram os instantes em que alcancei a definição do amor incondicional e eu sabia que um dia eles me fariam falta. 


A mesma falta que eu sentiria dos momentos como os que  tantas vezes dividi com meu marido num pequeno bistrô do Leblon, onde à noitinha comíamos sanduíches na baguete, tomávamos uma taça de vinho e depois saíamos caminhando de mãos dadas. Na época, eu nem sabia que caminhar pelo bairro um dia se tornaria uma aventura de risco, mas tinha o senso real de como estar atenta àquela nossa cumplicidade era fundamental para alimentá-la ao longo do tempo, para que aqueles momentos se repetissem (como vêm se repetindo), independente de estarmos no Leblon. O amor faz isso: transforma qualquer lugar em aconchego.  

Momentos felizes dos quais não fiz selfies, nem documentei em vídeos, porque não eram, não são grandes acontecimentos. E que teriam passado despercebidos, se, como o meu colega de trabalho que suscitou essa crônica, eu não estivesse atenta.  Atenta a esses pequenos fragmentos que tocam a essência da felicidade e que, por isso, precisam ser celebrados no instante em que acontecem. Atenta a essas pequenas memórias que são o sal da vida.

sábado, 7 de abril de 2018

Sobre estrelinhas e saudades

Imagem Google
Hoje faz uma semana que a minha mãe virou estrelinha. Passou a piscar pra mim lá do céu, depois de enfrentar o martírio de sobreviver durante 94 dias a um AVC que a deixou muda, paraplégica e sem a capacidade de engolir. Depois de ser reduzida a um olhar estupefato que, preso a uma cama e sem pestanejar, suplicava: me tira daqui...

Ela partiu no sábado pascal, saudando com aleluias os anjos  em que esbarrou pelo caminho. Partiu sem alardes. Dormiu. Descansou. E se transformou nessa luzinha que agora me vigia lá de cima, enquanto eu reviro gavetas, separo roupas para doação, limpo prateleiras, vasculho tesouros amealhados numa vida inteira.

Nessa sanha arrumadeira, encontro pedaços da minha própria vida. Fragmentos  escondidos,  entre lençóis de linho, há muito engomados. O missal com capa de madrepérola da minha primeira comunhão;  o aplique que engrossava tranças nos penteados da adolescência, no final dos anos sessenta; o Papai Noel de louça pintado à mão que, durante toda a minha infância, decorou a base da nossa árvore de Natal.

São pequenos capítulos de uma longa história que escrevemos juntas, ao longo dos meus sessenta anos, e que, hoje, resgatados nessas gavetas, me fazem lembrar de tudo o que vivemos juntas e dos laços de afeto que tecemos a quatro mãos. Lembro da sua presença apaziguadora, quando, na infância, me via  assombrada pelo temor de estar fadada a um destino igual ao seu: ficar órfã criança. Chegava a acordá-la no meio da noite, para checar se estava respirando. Ela sempre paciente, me abraçava e garantia: 

"Fica tranquila, Verinha, eu só vou morrer bem velhinha". 

Cumpriu a promessa. Essa e todas as outras que fez a mim e por mim. Sim, porque se a aflição era grande, ela tratava logo de entabular uma conversa com Nossa Senhora de Fátima e Santa Terezinha, para que tudo se acertasse e a vida voltasse a transcorrer sem sustos. Foi assim, que, depois de me ver sarar de uma otite aguda, aos 10 anos, ela passou um ano rezando um terço todos os dias, às seis da manhã; foi assim que, ao receber a notícia da minha aprovação no vestibular, ela se privou de doces, durante seis meses; foi assim que, ao longo da minha vida adulta, rezou novenas, acendeu velas e mandou dizer muitas missas, para me livrar das minhas agonias. Já que me tornei meio atéia e à toa, ela assumiu a missão de me representar frente aos santos. Uma vez, a flagrei me defendendo num diálogo com um deles: 

"Minha filha não reza, mas tem muita fé na vida". 

Eu nem tinha tanta, mas tratei de achar meios para construí-la. Achei que devia isso a ela -- não ia deixá-la passar por mentirosa frente ao tal santo. E foi assim, alicerçada na fé dela em mim, que fui trilhar minha jornada. Porque, como diz uma amiga querida, quem tem mãe não tem medo. E eu tive o privilégio de ter a minha comigo, nessa dimensão, durante muito tempo.  

Ela agora virou estrelinha e pisca pra mim lá do céu. Gosto de pensar que continua me representando perante os santos e que não precisa mais mentir pra eles: eu acredito mesmo na vida. Nessa colcha de retalhos de emoções que vamos costurando ao longo do tempo, que vão se transformando em sentimentos e que dão sentido ao próprio tempo. Nos dão sentido.

Muitas dessas emoções vivi com você, minha mãe. Elas ficarão para sempre guardadas na caixinha cor-de-rosa da minha memória, e aqui peço licença para roubar a definição de outra amiga querida para o lugar onde colocamos aqueles momentos que nos marcaram tanto, que quase podemos tocá-los, quando bate a saudade.

Pois é, mãe, e a saudade mal começou.,,