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Ela partiu no sábado pascal, saudando com aleluias os anjos em que esbarrou pelo caminho. Partiu sem alardes. Dormiu. Descansou. E se transformou nessa luzinha que agora me vigia lá de cima, enquanto eu reviro gavetas, separo roupas para doação, limpo prateleiras, vasculho tesouros amealhados numa vida inteira.
Nessa sanha arrumadeira, encontro pedaços da minha própria vida. Fragmentos escondidos, entre lençóis de linho, há muito engomados. O missal com capa de madrepérola da minha primeira comunhão; o aplique que engrossava tranças nos penteados da adolescência, no final dos anos sessenta; o Papai Noel de louça pintado à mão que, durante toda a minha infância, decorou a base da nossa árvore de Natal.
São pequenos capítulos de uma longa história que escrevemos juntas, ao longo dos meus sessenta anos, e que, hoje, resgatados nessas gavetas, me fazem lembrar de tudo o que vivemos juntas e dos laços de afeto que tecemos a quatro mãos. Lembro da sua presença apaziguadora, quando, na infância, me via assombrada pelo temor de estar fadada a um destino igual ao seu: ficar órfã criança. Chegava a acordá-la no meio da noite, para checar se estava respirando. Ela sempre paciente, me abraçava e garantia:
"Fica tranquila, Verinha, eu só vou morrer bem velhinha".
Cumpriu a promessa. Essa e todas as outras que fez a mim e por mim. Sim, porque se a aflição era grande, ela tratava logo de entabular uma conversa com Nossa Senhora de Fátima e Santa Terezinha, para que tudo se acertasse e a vida voltasse a transcorrer sem sustos. Foi assim, que, depois de me ver sarar de uma otite aguda, aos 10 anos, ela passou um ano rezando um terço todos os dias, às seis da manhã; foi assim que, ao receber a notícia da minha aprovação no vestibular, ela se privou de doces, durante seis meses; foi assim que, ao longo da minha vida adulta, rezou novenas, acendeu velas e mandou dizer muitas missas, para me livrar das minhas agonias. Já que me tornei meio atéia e à toa, ela assumiu a missão de me representar frente aos santos. Uma vez, a flagrei me defendendo num diálogo com um deles:
"Minha filha não reza, mas tem muita fé na vida".
Eu nem tinha tanta, mas tratei de achar meios para construí-la. Achei que devia isso a ela -- não ia deixá-la passar por mentirosa frente ao tal santo. E foi assim, alicerçada na fé dela em mim, que fui trilhar minha jornada. Porque, como diz uma amiga querida, quem tem mãe não tem medo. E eu tive o privilégio de ter a minha comigo, nessa dimensão, durante muito tempo.
Ela agora virou estrelinha e pisca pra mim lá do céu. Gosto de pensar que continua me representando perante os santos e que não precisa mais mentir pra eles: eu acredito mesmo na vida. Nessa colcha de retalhos de emoções que vamos costurando ao longo do tempo, que vão se transformando em sentimentos e que dão sentido ao próprio tempo. Nos dão sentido.
Muitas dessas emoções vivi com você, minha mãe. Elas ficarão para sempre guardadas na caixinha cor-de-rosa da minha memória, e aqui peço licença para roubar a definição de outra amiga querida para o lugar onde colocamos aqueles momentos que nos marcaram tanto, que quase podemos tocá-los, quando bate a saudade.
Pois é, mãe, e a saudade mal começou.,,
Que lindo Vera. Emocionado aqui. Obrigado por este lindo texto. Beijos
ResponderExcluirÉ... A saudade só vai aumentando... Sorry.
ResponderExcluirLindo mesmo, Verinha, e ainda com humor, uma das suas inúmeras qualidades. A conversa da sua mãe com os Santos é demais!
ResponderExcluirLindo texto, tão delicado e leve. Bj
ResponderExcluirSempre tocando nossas almas, Vera, com sua verdade, com sua história de vida, sua dor, seu amor. Um toque com sensibilidade e humor. Sua mãe deixou aqui uma linda herança para todos nós.
ResponderExcluirAi, Vera, é doloroso perder uma querida, mas é uma alegria saber que você e sua mãe construíram uma relação tão bonita. Ela brilha lá no céu e você aqui na Terra.
ResponderExcluirrevivi no seu texto incrível a perda da minha há pouco, o "encontro de pedaços das nossas vidas" nas gavetas. É dolorido ter mãe só estrelinha mesmo aos sessenta.
ResponderExcluirQue linda as suas memórias e lembranças de sua mãe!! É muito triste perder a mãe. Minha mãe, há seis anos, vítima também de um AVC, foi morar com Deus.Nos deixando muitas saudades e muitas lembranças. Fique com Deus!! Que o bom Deus te abençoe, confortando neste momento de dor!!
ResponderExcluirMemórias cheias de emoção e lembranças boas acalmam o coração e alimentam a nossa alma. Belo texto!
ResponderExcluirLeitores queridos, Obrigada por seus comentários. Eles me acolhem, abrigam e consolam. Muito bom saber que o que escrevo aqui ecoa em tantos corações.
ResponderExcluirlindo texto...emocionante... adoro seu Blog.
ResponderExcluirparabéns! um grande bjo.