Quem sou eu

sábado, 19 de maio de 2018

Sobre Primeiras Vezes


A primeira vez a gente nunca esquece. 
Eu sei, a frase é clichê. Mas quem não se lembra do primeiro dia na escola, da primeira melhor amiga para a vida toda, da primeira paixão platônica, da primeira langerie, do primeiro beijo, do primeiro amor para a vida inteira?...  Quem não se lembra de todas essas (e muitas outras) intensas e longínquas primeiras vezes?

Imagem Google
Essa rede de clichês tecida na delicadeza das percepções infantis,  depois,  no arrebatamento das descobertas adolescentes e, bem mais tarde, nas sutilezas que se anunciam através do primeiro fio branco em um lado das têmporas, da primeira ruga de expressão no canto dos olhos e da primeira vez que alguém desconhecido te chama de senhora.

Sim, senhora!

Lembro como se fosse hoje.  Eu não tinha ainda chegado aos quarenta, viajava distraída no banco traseiro de um táxi apreciando a paisagem do aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, quando,  de repente, o motorista perguntou:  a senhora tem algum caminho de preferência? Eu estava tão convicta  de que ele não se dirigia a mim, que cheguei a procurar em volta pela senhora que partilhava o táxi comigo. Acho que teria me assustado menos se houvesse encontrado uma companheira de viagem ao meu lado,  numa época em que nem se sonhava com o Uber, do que ter constatado que, sim, eu estava sozinha no carro com o motorista e que, portanto, a dita cuja senhora era EU!.

Confesso: até hoje ainda me surpreendo com o tratamento, por mais rotineiro que ele tenha se tornado, desde aquela fatídica e desavisada primeira vez no táxi. Meu primeiro reflexo continua sendo querer olhar em volta à procura da tal senhora que vêem em mim e que eu  posso até  enxergar na imagem refletida nos espelhos e nas vitrines, mas que não reconheço dentro de mim. De mim, comigo mesma, ainda sou  e me sinto ‘você’— e gostaria que essa fosse a forma de tratamento que todos usassem quando se dirigissem a mim. Já consigo, porém, conter a reação instintiva de buscar a ‘tal senhora’ fora de mim e reagir conformadamnte. Ao ouvir o fatídigo tratamento, engulo em seco, sorrio e, dependendo da situação e do interlocutor, até respondo: pode me tratar por você. O que às vezes é pior, porque ouço como resposta:

“Ah! Desculpe! É uma questão de respeito com os mais velhos”.

Tempos atrás, conversando com uma amiga querida sobre esse meu estranhamento permanente, ela, que tem onze anos menos do que eu, me contou nunca ter tido problemas com o tratamento de senhora, mas que três anos atrás se sentiu constrangida, ao ter que explicar à vendedora da farmácia que o bebê que trazia no colo e cuja idade ela (a vendedora) queria saber, não era seu neto, mas sim seu filho. Pior: ao constatar o embaraço da moça, ainda completou:

"É.. Foi tarde, mas ainda deu tempo!"

Ao que a vendedora, entre constrangida e aliviada,  respondeu:

"É...  Benza Deus, senhora!"

Isso me faz lembrar o relato  constrangido do meu marido, sobre a primeira vez em que, no metrô lotado, uma moça se levantou para lhe ceder o assento. E por mais que ele afirmasse que não era necessário, ela insistia:

“Por favor, o senhor deve estar muito cansado”.

E ele se sentia super bem disposto naquele dia… Isso me faz pensar também na satisfação que uma amiga de 64 anos experimentou, na fila do cinema, quando  lhe pediram documento para comprovar que, sim, ela tinha mais de 60 anos, portanto, estava exercendo seu direito a pagar meia entrada.

“Fiquei tentada a pagar a entrada inteira – me disse ela -- só pelo prazer de parecer ter menos idade”.


Tudo isso me remete ao fato de que em dois meses estarei completando 62 anos e que, pela primeira vez na vida, sou a mais velha do meu círculo de convivência profissional.  Há quase nove meses,  comecei a trabalhar com pessoas,  cuja idade média é de 30 anos, e essa experiência tem me levado a aprender um bocado sobre a minha atividade em si e sobre mim mesma. Meus jovens colegas têm desafiado constantemente minha capacidade de pensar fora da caixa e tenho constatado que meu ponto de vista mais experiente tem somado. Me sinto renovada a cada dia que compartilho do seu entusiasmo e feliz em poder contribuir para que ele não esmoreça nos momentos mais desafiadores, que sempre acontecem em qualquer projeto de trabalho e em que somos todos testados. 

Essa é uma daquelas primeiras vezes que ficarão marcadas para sempre em mim, como ficaram meu primeiro vôo de asa delta, meu primeiro livro publicado, a primeira declaração de amor do meu marido. Sei que são emoções completamente distintas, mas posso garantir: todas muito intensas. Todas tão renovadoras como essa do trabalho, onde até hoje, para minha grata surpresa, ninguém nunca me chamou de senhora.

5 comentários:

  1. Faltando meses para chegar aos 60, descubro seu blog, Vera. Vou acompanhar. O choque que você descreve acima aconteceu bem antes para mim. Tinha 30 e pouquíssimos anos e tomava sol sozinha em Maresias quando um lindo rapaz se aproximou com um cigarro entre os dedos e me perguntou: "TIa, tem fogo?" Vontade de responder que tinha muito, mas me limitei a grunhir um NÃO raivoso. O pior é que, olhando para trás, acho que eu era muito, muito velha mesmo em algumas atitudes. Hoje já não sinto nenhum desconforto ao ser tratada como senhora, embora prefira o você. "Leva-se muito tempo para ser jovem" - Picasso

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bom de re-encontrar por aqui, Katia. E fico feliz que tenha sido através do 2XTrinta. Concordo plenamente com Picasso.

      Excluir