A pálida luz do amanhecer se insinua pelas frestas da veneziana. Rompe lentamente a penumbra do quarto, com a delicadeza dourada de um dia que promete ser ensolarado. Na cama, ao meu lado, meu marido ainda dorme profundamente. Ressona, quase ronca. Isso pode parecer pouco poético, eu sei; mas o amor exerce esse efeito transformador na forma como a gente enxerga o outro e, neste momento, o som do seu sono profundo aquece meu coração No tapete ao lado, Onassis, nosso gato de estimação, ronrona e se alonga "Prrrrrrrrr, Prrrrrrr, Prrrrrrr!' Essa é a manifestação maior da felicidade felina. Ela faz o contraponto perfeito a essa sensação de plenitude que experimento na quietude dessa manhã.
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Se as rimas aqui acontecem por acidente e, reconheço: são pobres, esse silêncio recheado de pequenos ruídos me lembra muitos outros domingos. O das tardes desertas, na infância, quando meus pais se recolhiam para dormir a siesta e eu, filha única, sem ter com quem brincar, me refugiava nos livros. O das madrugadas adolescentes, em que voltando das baladas de sábado, entrava pé ante pé em casa e, por mais que não fizesse barulho, sempre encontrava meu pai acordado, para fazer a pergunta da qual eu queria escapar: "Isso são horas?!" O das manhãs cedinho na praia, quando a época de quarar ao sol já havia passado e eu caminhava no calçadão ouvindo gaivotas e respirando maresias.
Domingos. Impossível não lembrar dos versos: 'Hoje é domingo, pede cachimbo, cachimbo é de barro, que bate no jarro, o jarro é de ouro, que bate no touro, o touro é valente, bate na gente, a gente é fraco e cai no buraco, o buraco é fundo, acabou-se o mundo!'. Impossível não cantá-los, enquanto me afasto da janela e vou para a cozinha preparar o café. Um ritual de domingo que o gato acompanha, trançando volteios entre as minhas pernas. Ligo a torradeira, ponho água para ferver, pego a manteiga, a geléia, o requeijão. Vou arrumando a mesa, enquanto esquento o pão e passo o café -- assim mesmo, do jeito antigo, no coador de pano, que minha mãe me deu e cujo manejo me ensinou. "Para garantir o sabor, é preciso misturar o pó na água borbulhante, mexer, esperar levantar a fervura e coar imediatamente", ela dizia. E eu a reencontro, quando reproduzo esses mesmos gestos numa coreografia quase minimalista e sinto o cheiro do café inundar a cozinha. Com que lã se tece a saudade, mãe? A lã do tempo que passou, eu mesma respondo.
O miado do gato me avisa que meu marido acordou. Ele aparece na cozinha, me dá um beijo, diz que o café está cheiroso e vai pegar os jornais na porta do apartamento. Sim, somos daqueles que ainda lêem jornal em papel, demoradamente, saboreando o café da manhã. Somos daqueles que cultivam esses rituais analógicos. Rituais que para tantos já se perderam na velocidade digital, mas que nós repetimos e repetimos, com prazer, nessas manhãs silenciosas de domingo.