Quem sou eu

domingo, 18 de novembro de 2018

Porque as rosas não falam


Rosas amarelas. Ela lhe estendeu um buquê de rosas amarelas. E ele ficou, ali, estático, meio aparvalhado, sem saber o que fazer, o que dizer. Até que o silêncio ficou insuportável e ela, ainda segurando as flores, perguntou:

- Você não gosta de amarelo?

Ele não conseguiu responder. Ela insistiu:

- Não gosta de rosas?

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Ele continuou calado. Ela não desistiu:

- Não gosta de flores?!

-- NaÃaao!... Não é nada disso! É que....  Ele conseguiu gaguejar, antes que ela emendasse uma outra pergunta-conclusão.
Ela esperou que ele terminasse a frase, ainda segurando as rosas. Ele respirou fundo, mordeu os lábios, mas só conseguiu repetir:

— É que...

— É que, o quê?! - interrompeu ela, ansiosa para quebrar aquela pausa interminável.

Ele a olhou mais uma vez sem responder. Ela apertou as flores contra o peito para resistir ao impulso de arremessá-las na cara dele. Até que ele, finalmente, falou:

— É que... Eu não mereço. Eu não mereço.

E não merecia mesmo. Só que ela se comoveu com a resposta e insistiu nas flores.  Ele, então, as aceitou. Aquelas e muitas tantas outras que ela lhe daria e ele retribuiria, sempre que houvesse um impasse e um reinício naquela história. Uma história que durou  25 anos, entre rompimentos dramáticos, definitivos, e recomeços arrebatados, cheios de promessas. Promessas sempre seladas com flores. Rosas. Rosas amarelas.

Foi assim, naquele começo, quando depois de seis meses de namoro intenso, ele confessou que ainda não havia se divorciado, que na verdade estava apenas separado - só dando um tempo para pensar melhor sobre as coisas… … E que por causa do filho pequeno, voltaria pra casa.

-- Mas é só ele crescer e a gente fica junto. Juntos para sempre --. Ele se apressou em prometer.

Ela se revoltou, esperneou, esbravejou, chorou baldes durante semanas a fio, mas finalmente convencida de que ele era o homem da sua vida, aceitou. Afinal, o que eram sete anos para um amor da vida inteira?, argumentou consigo mesma. E foi assim que o procurou com aquele primeiro ramalhete amarelo, que gerou tantas reticências e gaguejadas.
Entre juras constrangidas, reataram.

Seguiram inseparáveis dentro das limitações de uma vida dupla - a dele. Até que, por descuido, ela engravidou e ele a convenceu de que não era o momento para terem um filho. Ela abortou. Três meses depois ficou sabendo que ele seria pai novamente. Soube por amigos que a esposa - aquela de quem ele se separara e pra quem só voltara por causa do filho pequeno - estava grávida de seis meses. Numa época em que a internet era incipiente e as redes sociais ainda não existiam, era o boca a boca das relações pessoais que trazia essas surpresas bombásticas. E não se tratava de fake news

O rompimento foi quase silencioso. Aquilo doía tanto, que ela mal conseguia articular o misto de raiva, tristeza, revolta, desalento que lhe consumia as vísceras. Tudo ardia tanto, que,  durante a hora e meia que durou aquela conversa, ela se limitou a repetir monocordimente quatro palavras, diante de todas as explicações, justificativas, pedidos de perdão e juras de amor que ele lhe ofereceu.

— Sai da minha vida.

— Mas...

— Sai da minha vida.

— Você precisa entender que...

— Sai da minha vida. Sai da minha vida. Sai da minha vida.

Assim, como se fosse um mantra. Um mantra que ela repetiu ali, por noventa minutos, e durante todas as investidas que, nos três meses seguintes, ele armou para tentar voltar. O bebê nasceu, ela resolveu passar um tempo no exterior para desapegar. Ficou um ano fora. Ele lhe escreveu todos os dias. Ela não respondeu, ignorou todos os seus emails. Até o dia em que chegou em casa e deparou com um buquê de rosas amarelas e o cartão lacônico: “O casamento acabou. Volta pra mim”.

Ela voltou. Não fez qualquer pergunta; voltou uma semana depois. Ele a recebeu em lágrimas e com muitos outros buquês de rosas amarelas para marcar o começo de uma nova vida. E começaram. Alugaram uma casa, para que tudo se iniciasse do zero, a arrumaram com o que identificavam ser  “a cara dos dois” e se mudaram só com roupas e objetos pessoais.
Tudo parecia um sonho. Até que ele foi ficando calado, quieto, meio ausente. No começo ela fingiu não perceber, mas à medida que aquilo foi se tornando uma constante, quis saber.

   Banzo – ele respondeu

   Banzo?! Banzo, de quê?  

Encurtando uma longa história, ele sentia falta das camisas passadas e penduradas no armário em ordem de cor; dos sapatos engraxados e energicamente lustrados no chão do closet; do mamão cortado em cubos e do jornal dobrado sobre a mesa do café da manhã. Um ritual “de mimos” que não existia, ali, naquela casa com ela;  uma rotina que pertencia à outra vida que ele deixara pra trás. Que ele quis deixar pra trás.
#Só que não. E embora as hashtags nem existissem como código de comunicação, foi assim que seis meses depois de montar a casa dos sonhos, para viver a vida dos sonhos, com a mulher dos sonhos, ele reatou o casamento anterior.

Ela não aceitou. Passou meses pedindo explicações por cartas, emails, voice mails e, claro, enviando buquês de rosas -- rosas amarelas. Até que se convenceu de que não obteria respostas; aquele banzo não era uma mera recaída. Padeceu para se conformar. Adoeceu para se acostumar  Com o tempo, se restabeleceu. Se desfez da “casa dos sonhos”, voltou para o seu antigo apartamento, mudou o corte de cabelo, conseguiu um novo emprego, retomou as caminhadas na praia e, entre e uma e outra, começou a sair com um sujeito que conhecera numa parada pra tomar água de coco.

Foi quando as saídas começaram a tomar um formato parecido com namoro, que ele reapareceu na frente do seu prédio com as explicações de sempre, os pedidos de perdão de sempre, as declarações de amor de sempre e as rosas de sempre: amarelas, sempre amarelas. É claro que ela sucumbiu e os vinte anos seguintes foram assim: pontuados por grandes gestos de idas e voltas; marcados por intensas demonstrações de amor e de ódio; assombrados pela memória dos amigos que foram ficando pelo caminho, quando alertaram, aconselharam, tomaram partido de uma ou de outra parte. E no meio disso tudo estavam elas, as rosas. Estavam lá, como estão aqui agora, anônimas e silenciosas, sobre o caixão em que o corpo dele é velado pela família a que ela não pertence. Rosas amarelas, sempre amarelas.

domingo, 14 de outubro de 2018

Quitando promessas

Foi difícil fazer as malas. Foi preciso coragem, para cogitar bater a porta e não olhar pra trás. Agora estava ali, com a mão na maçaneta, pronta para ir. A decisão  demandou dose extra de determinação para não titubear, quando o cachorro deitou dentro da mala aberta sobre a cama e ganiu baixinho, adivinhando o que as roupas dobradas anunciavam. Ela sabia: aquele seria um caminho sem volta. Por isso, se preparara durante meses para trilhá-lo.

Foi se despedindo aos poucos, sem pressa ou ansiedades. A cada dia, sussurrando um adeus: à casa de pé direito alto; ao jardim repleto de samambaias; à sombra da amendoeira debruçada sobre a varanda; aos cheiros vindos da cozinha - café fresquinho, arroz de forno, ambrosia...  
Foi juntando as memórias que tudo aquilo trazia, diligentemente, como quem monta uma colcha de retalhos, um patchwork de emoções; foi bordando cada momento ali vivido, como quem escreve um diário ou organiza um álbum de fotografias. Daqueles que, num tempo analógico, ficavam quase esquecidos num canto da estante, mas que a gente sabia: estavam ali, para aplacar a saudade quando ela nos assombrasse.

Durante oito meses, ela escolheu cirurgicamente o que levaria dali: dois jeans, algumas camisetas, três livros de Clarice (*), uma jaqueta, uma dúzia de calcinhas, dois DVDs do Carlitos, um batom, dois pares de tênis, um vinil de Tom Jobim, uma camisola, um robe de cetim, um castiçal herdado da avó, o xale andaluz presente da mãe, a caixinha de música com a bailarina que ainda rodopia ao som de se essa rua fosse minha... , um balangandã para pendurar no pescoço, outro batom, uma gola de renda guipir, a caneca de porcelana comprada em Paris - Hier ancore j’avais vingt ans/Ainda ontem eu tinha vinte anos... Algumas palavras não ditas, algumas outras engolidas, outras tantas escritas num bloco de notas - cartas sem destinatário.

Aquilo era tudo. Tudo o que cabia na bagagem.  Tudo o que precisava como referência e utilitários  para romper com a promessa do até que a morte os separe, colocar a aliança sobre a cômoda, engavetar os sonhos despedaçados, recolher as cicatrizes e partir. Bater a porta e partir.

Foi. Partiu.


Partiu no silêncio de uma tarde ensolarada de quinta-feira. Silêncio quebrado apenas pelo barulho dos seis tiros que o marido disparou, quando a viu despontar no portão. Cinco para ela e um para si. Todos certeiros. A precisão necessária para matar qualquer possibilidade de recomeço. Pontaria treinada durante oito meses, para garantir o final infeliz. Porque ele, o marido, tinha certeza: aquilo que Deus une o homem não separa e tudo que aqui se faz, aqui se paga.
(*) Clarice Lispector 

domingo, 9 de setembro de 2018

Sobre domingos


A pálida luz do amanhecer se insinua pelas frestas da veneziana. Rompe lentamente a penumbra do quarto, com a delicadeza dourada de um dia que promete ser ensolarado. Na cama, ao meu lado, meu marido ainda dorme profundamente. Ressona, quase ronca. Isso pode parecer pouco poético, eu sei; mas o amor exerce esse efeito transformador na forma como a gente enxerga o outro e, neste momento, o som do seu sono profundo aquece meu coração  No tapete ao lado, Onassis, nosso gato de estimação, ronrona e se alonga "Prrrrrrrrr, Prrrrrrr, Prrrrrrr!' Essa é a manifestação maior da felicidade felina. Ela faz o contraponto perfeito a essa sensação de plenitude que experimento na quietude dessa manhã.

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O domingo vai chegando, assim, em silêncio e preguiçoso. Lá fora, a rua está calada, sem o barulho usual dos carros e o movimento de pessoas indo e vindo. Um passarinho canta ao longe e outro parece responder daqui. Visto da janela, o bairro parece ainda estar dormindo. Um passeador de cães atravessa a calçada em vigília, puxado por doze patas que ele tenta controlar pelas coleiras. Os cachorros brincam entre si e quase o desnorteiam na sua alegria pueril. Um homem aparece no jardim do prédio em frente, para regar e podar canteiros. Não usa chapéu de palha, mas traz um grande regador e torneia os arbustos como se os esculpisse. Uma ciclista cruza a esquina e acena para alguém que não consigo enquadrar no meu ângulo de visão.  Pedala cadenciadamente, debruça-se sobre o guidão, enfrenta o vento que vem ao revés, enverga um capacete verde limão. O neon do capacete reflete o sol. O sol que vai colorindo, fachadas, calçadas, asfalto… Que vai desenhando sombreados, através das árvores -- essas rendas que brincam pelo chão. 

Se as rimas aqui acontecem por acidente e, reconheço: são pobres, esse silêncio recheado de pequenos ruídos me lembra muitos outros domingos. O das tardes desertas, na infância, quando meus pais se recolhiam para dormir a siesta e eu, filha única, sem ter com quem brincar, me refugiava nos livros. O das madrugadas adolescentes, em que voltando das baladas de sábado, entrava pé ante pé em casa e, por mais que não fizesse barulho, sempre encontrava meu pai acordado, para fazer a pergunta da qual eu queria escapar: "Isso são horas?!" O das manhãs cedinho na praia, quando a época de quarar ao sol já havia passado e eu caminhava no calçadão ouvindo gaivotas e respirando maresias.

Domingos. Impossível não lembrar dos versos: 'Hoje é domingo, pede cachimbo, cachimbo é de barro, que bate no jarro, o jarro é de ouro, que bate no touro, o touro é valente, bate na gente, a gente é fraco e cai no buraco, o buraco é fundo, acabou-se o mundo!'. Impossível não cantá-los, enquanto me afasto da janela e vou para a cozinha preparar o café. Um ritual de domingo que o gato acompanha, trançando volteios entre as minhas pernas. Ligo a torradeira, ponho água para ferver, pego a manteiga, a geléia, o requeijão. Vou arrumando a mesa, enquanto esquento o pão e passo o café -- assim mesmo, do jeito antigo, no coador de pano, que minha mãe me deu e cujo manejo me ensinou. "Para garantir o sabor, é preciso misturar o pó na água borbulhante, mexer, esperar levantar a fervura e coar imediatamente", ela dizia. E eu a reencontro, quando reproduzo esses mesmos gestos numa coreografia quase minimalista e sinto o cheiro do café inundar a cozinha. Com que lã se tece a saudade, mãe?  A lã do tempo que passou, eu mesma respondo.

O miado do gato me avisa que meu marido acordou. Ele aparece na cozinha, me dá um beijo, diz que o café está cheiroso e vai pegar os jornais na porta do apartamento.  Sim, somos daqueles que ainda lêem jornal em papel, demoradamente, saboreando o café da manhã. Somos daqueles que cultivam esses rituais analógicos. Rituais que para tantos já se perderam na velocidade digital, mas que nós repetimos e repetimos, com prazer, nessas manhãs silenciosas de domingo.  

sábado, 11 de agosto de 2018

Enfim, 62

Moça! Essa vaga é reservada para idosos!”

A observação do segurança do shopping me surpreende no meio da manobra e é ainda com a ré engatada que saco o cartão de identificação de idoso do porta-luvas para mostrar a ele.
Cheio de autoridade, ele reage:

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“Preciso de um documento de identidade, moça, para comprovar seu direito ao cartão e à vaga”.

A exigência me faz puxar o freio-de-mão, antes de acabar de estacionar o carro. Surpresa e, ao mesmo tempo, confusa com a situação, pergunto:

“Como assim?!”

Zeloso do seu dever, ele explica compenetrado:

“Pra comprovar a terceira idade, moça”.

Ainda duvidando do que estou ouvindo, lhe entrego a carteira de habilitação que, atabalhoadamente, busco dentro da bolsa. Numa fração de segundos, viajo no tempo. Me vejo acendendo o primeiro cigarro, aos 12 anos, para provar a todos e a mim mesma que a infância havia ficado para trás e que eu estava habilitada a frequentar aquele grupo seleto de meninas de quinze que, maduras e experientes - assim me pareciam -  se juntavam no fundo da cantina do colégio para fumar e filosofar. Sim, por incrível que pareça,  o cigarro já foi sinônimo de emancipação e num tempo em que as relações se davam no mundo real - o virtual só existia na imaginação - ele, o cigarro compartilhado, era o passaporte de acesso ao universo adulto.

Volto à época em que, aos 15 anos, respirava fundo, subia num salto alto e me enchia de atitude para entregar o ingresso ao porteiro do cinema, a fim de convencê-lo de que, sim, eu já tinha idade para assistir a um filme proibido a menores de dezoito. E de como, aos dezessete, o batom vermelho, a mecha de cabelo elaboradamente jogada sobre um dos olhos e o vestido preto de veludo molhado eram a caracterização necessária para ter acesso à balada que só as amigas de vinte e um podiam frequentar. Estar com elas ali era a prova irrefutável de que eu já era, sim, uma mulher feita.

Foram poucas as vezes em que, apesar de todos esses esforços, não me pediram o comprovante de identidade para provar que eu tinha a idade compatível para performar baforadas de fumaça na hora do recreio, assistir a duas sessões seguidas de ‘A primeira noite de um homem’ e para dançar de rosto colado a trilha romântica do momento. ‘ I started the joke’...
Em tempos em que Netflix e Sportfy eram delírios de ficção científica, era assim que se atravessava a adolescência. E foram muitas as situações em que, frustrada, humilhada, envergonhada e, em meio à intensidade de tantos outros ‘adas’ típicos da fase teen,  tive que girar nos calcanhares em direção oposta à da cantina do colégio, da sala de cinema ou da boate da vez.

Nessas circunstâncias em que meus disfarces não convenciam e eu era obrigada a aceitar e a assumir minha menor idade, eu espumava revolta e raiva, ao me ver barrada nos portais do mundo adulto; nas passagens para o que eu considerava ser o eldorado. E se, naqueles momentos, alguém me dissesse que chegaria o dia em que eu me divertiria ao ter que comprovar minha senioridade, eu certamente esbravejaria contra ao que, então, pareceria uma reles tentativa de consolo.

A expressão desconcertada do segurança do shopping diante do que lê no meu documento e sua voz titubeante me trazem de volta ao agora.

“Moça, quer dizer...Se-se-senhora - ele gagueja, enquanto me devolve o documento e o cartão  de idoso - me desculpe, mas você, que-quer dizer, a se-senhora não parece”...

“Naaaão?!” - me pergunto em silêncio, enquanto ele inspira e expira para emendar a explicação:

“É que tem muitos jovens que vêem pra cá com o cartão de idoso dos pais, para usarem as vagas e ...”

Minha gargalhada interrompe sua justificativa. Na verdade, o deixa tão sem graça, que ele coloca um ponto final na frase inconcluida. Começa a gesticular, na tentativa de disfarçar o desconforto. Se agarra ao pretexto de ajudar quem acaba de revelar-se 'uma senhorinha' na manobra final para estacionar. Sem conseguir parar de rir, sigo suas instruções até alinhar o carro.

Quando saio do veículo,  ele já não está mais ali. Girou rapidamente nos próprios calcanhares, para livrar-se da saia justa em que julgou ter se metido. Mal sabe a viagem que me proporcionou e o prazer com que agora guardo minha CNH, retoco o batom vermelho e sigo para dentro do shopping. Sim, o batom permaneceu ao longo do tempo; não mais como disfarce, mas como marca registrada. Uma espécie de assinatura de quem não nega mais a idade: sim, senhor, eu tenho 62 anos.







sábado, 14 de julho de 2018

Reflexões de quase aniversário

O pior naufrágio é não partir. Compartilhada pelo jornalista Flávio Tavares em um  e-mail de trabalho, a frase do navegador e escritor Amir Klink propõe a reflexão sobre como  muitas vezes esperamos tanto para sair em busca dos nossos sonhos, que naufragamos simplesmente porque não tentamos.
Às vésperas de completar 62 anos, é impossível receber esse e-mail sem fazer, eu mesma, um balanço sobre quantas  vezes, ao longo dessas minhas mais de seis décadas, me agarrei à segurança do cais e ao conforto de algumas certezas. Quantas vezes deixei de me lançar à aventura do novo e me privei da oportunidade do aprendizado que ela sempre traz. 

Meu balanço é positivo, no sentido de que, ao longo do tempo, venho me arriscando mais do que tenho me entregado à zona de conforto. E se esta às vezes se torna tentadora, o medo de fossilizar em verdades tem alimentado minha inquietação. E o medo de ter medo tem me levado a fugir de longas calmarias.

Foi assim, aos 17 anos, quando troquei a proteção da casa paterna pela vida universitária  no Rio de Janeiro.  Ter que dar conta de ser independente me mostrou onde estavam meus alicerces e me fez reconhecer como era/é bom tê-los sólidos. Foi assim também aos 22, quando joguei um bom emprego pro alto, para perseguir o sonho de ser jornalista e, ao conquistá-lo e consolidá-lo, oito anos mais tarde o troquei pela aventura da comunicação corporativa. Nessa jornada que dura até hoje, fiz um pouco de tudo.  Ganhei, perdi, cresci e aprendi que nem sempre as coisas acontecem da forma e no tempo que a gente espera, mas que esse tempo de espera  testa e treina a paciência, a resiliência, a insistência. Me descobri persistente e ansiosa, ao longo dos anos.  Não me orgulho da ansiedade particularmente, mas ninguém  é perfeito, não é mesmo?  

Também não me orgulho de algumas brigas que comprei, mas com elas me dei conta de que é melhor errar do que se omitir. Os erros ensinam e, a partir do que ensinam, até podem ser corrigidos; ou, pelo menos, não se repetirem. A omissão não. Ela vira fantasma e passa a vida nos assombrando com a pergunta: o que teria acontecido, se... E esse exercício inglório, sem respostas, vai consumindo as vísceras e a alma.
Melhor mesmo errar com convicção. Até porque só erra quem tenta e não tentar remete ao naufrágio do início desse texto. O naufrágio de quem não parte, à espera das condições perfeitas para navegação.

A dois dias de embarcar na minha nova idade, tudo o que sei é que quero continuar tentando. Quero continuar me lançando ao mar. E se para isso preciso domar algumas ondas e vencer o desafio de alguns ventos ao revés, já estou içando as velas. Sei que mais adiante outros ventos soprarão a favor. 

sábado, 9 de junho de 2018

Sobre Ausências e Presenças

Faz dois meses que minha mãe virou estrela. Juntou-se a uma constelação de mulheres maravilhosas que marcaram a minha vida e que, há tempos, não estão mais por aqui. Minha madrinha e tia Dudu, minha tia Horaida, minha tia-avó Leopolda, minha mãe postiça Elzita, minhas amigas Elvira e Tana,  além das Celinas, avó e mãe do meu marido, que não cheguei a conhecer, mas que passei a amar pelo que vejo delas nele.
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A saudade que sinto da minha mãe me faz lembrar de todas essas mulheres, que sempre me inspiraram e de alguma forma me influenciaram a ser quem sou.  E mesmo que elas não tenham necessariamente convivido entre si enquanto estiveram por aqui, gosto de pensar que, onde estiverem agora, estão juntas, apreciando uma boa taça de vinho, como minha mãe e madrinha gostavam, e se dedicando a looooongas e saborosas conversas. E, claro, olhando por mim.

Posso ver minha vó Leopolda, debruçada sobre a grande mesa com tampo de mármore, que tinha na copa, abrindo a massa que ela mesmo fazia para os almoços de domingo.  Junto com meu tio-avô Ramos, ela ocupou o lugar dos avós que não conheci e me mimou como se neta fosse. Acho que lá, na dimensão das estrelas, continua    convidando todos ao seu redor para comer seu imperdível ravióli e debatendo ardorosamente com sua filha, minha tia Horaida, a necessidade de arrumar a mesa com uma legitima toalha de linho bordada na Ilha da Madeira. Vó Leopolda acreditava piamente que o ritual à mesa influenciava o apetite; minha tia Horaida não discordava, mas pensava que era possível modernizá-lo, pelo menos no que tocava toalhas engomadas... Porém, sempre cedia aos argumentos da mãe. E foi ali, tenho certeza, que comecei a apreciar mesas ornadas com cristais e castiçais. E onde também descobri o sabor de casa em festa materializado nos fios de ovos, que minha tia Horaida se esmerava em caramelizar toda vez que decidia dar um toque de requinte aos seus assados.

O requinte talvez não fosse a maior qualidade da minha madrinha e tia Dudu, mas ela transbordava em generosidade e bom humor. Mesmo não dispondo com meu tio Leo de muitos recursos e tendo que dar conta de quatro filhos, sua casa estava sempre aberta para sobrinhos, afilhados, vizinhos, agregados e quem mais chegasse para fazer uma boquinha e/ou bater um papo.  Foi sempre a melhor colônia de férias da minha infância e adolescência. Ali aprendi a viver em grupo e a abrir mão da minha egotrip de filha única para compartilhar brinquedos, cama, roupa, comida e risadas. Ali me dei conta de que o mundo ia além do meu próprio umbigo e que uma boa gargalhada pode curar as piores feridas.

Foi através de outra filha única, minha amiga Patricia, que ganhei Elzita, mãe dela e que aos poucos foi se tornando minha mãe postiça. Eu tinha 18 anos e acabara de chegar de Petrópolis para cursar jornalismo no Rio. Conheci a filha no corredor da universidade, desbussolada como eu, procurando pela sala de aula; em cinco minutos viramos amigas de infância. As duas, mãe e filha, em pouco tempo me adotaram e a casa delas passou a ser também a minha. Com elas entendi o que é ter uma família do coração — aquela que a gente escolhe pelos laços do afeto.

E foram esses laços que, entre os vinte e poucos e os trinta e alguns anos, me conectaram a Elvira e a Tana, mulheres empoderadas muito antes da expressão existir e virar moda; ambas escritoras, ambas multi talentosas — tudo o que eu queria ser quando crescesse.  Ambas se tornaram minhas almas gêmeas e o meu avesso, assim mesmo: junto e misturado. Com elas entendi e vivi o afeto apesar das discordâncias, das discrepâncias, das incoerências. Me tornei mais flexível. Amadureci.

Amadureci, mas não o suficiente para ficar órfã de mãe. Ainda que você, mãe, tenha vivido tanto e já não pudesse mais cuidar de mim; ainda que nos últimos anos tivesse se tornado um pouco minha filha; você estava sempre lá pra mim, por mim. E isso me tranquilizava — era como ter sempre um colo pra onde correr.

Nesses dois meses em que você não está mais por aqui, tenho encontrado na saudade o alento para os temores da orfandade que me assombram desde menina. Foram muitas as vezes, em que criança e mesmo adolescente, entrei pé ante pé no seu quarto em horas de sono,  para checar se você estava respirando. Hoje sinto o seu pulso no piscar das estrelas e me consolo, porque penso que você não está aí sozinha, seja lá esse lugar onde for. Penso que você está aí junto com a tia Dudu, tia Horaida, vó Leopolda, mãe Elzita, Elvira, Tana e as Celinas -- avó e mãe do Luc, seu filhão (assim você disse pouco tempo antes de partir) e meu marido. As Celinas que não conheci, mas que passei a amar pelo que vejo delas nele. E que, tenho certeza, com você e todas essas mulheres maravilhosas, agora olham por mim daí desse lugar, onde quer que ele fique.