Rosas amarelas. Ela lhe estendeu um buquê de rosas amarelas. E ele
ficou, ali, estático, meio aparvalhado, sem saber o que fazer, o que dizer. Até
que o silêncio ficou insuportável e ela, ainda segurando as flores, perguntou:
- Você não gosta de amarelo?
Ele não conseguiu responder. Ela insistiu:
- Não gosta de rosas?
- Não gosta de flores?!
-- NaÃaao!... Não é nada disso! É que.... Ele conseguiu
gaguejar, antes que ela emendasse uma outra pergunta-conclusão.
Ela esperou que ele terminasse a frase, ainda segurando as rosas.
Ele respirou fundo, mordeu os lábios, mas só conseguiu repetir:
— É que...
— É que, o quê?! - interrompeu ela, ansiosa para quebrar aquela
pausa interminável.
Ele a olhou mais uma vez sem responder. Ela apertou as flores contra
o peito para resistir ao impulso de arremessá-las na cara dele. Até que ele,
finalmente, falou:
— É que... Eu não mereço. Eu não mereço.
E não merecia mesmo. Só que ela se comoveu com a resposta e insistiu
nas flores. Ele, então, as aceitou. Aquelas e muitas tantas outras que
ela lhe daria e ele retribuiria, sempre que houvesse um impasse e um reinício
naquela história. Uma história que durou 25 anos, entre rompimentos
dramáticos, definitivos, e recomeços arrebatados, cheios de promessas.
Promessas sempre seladas com flores. Rosas. Rosas amarelas.
Foi assim, naquele começo, quando depois de seis meses de namoro
intenso, ele confessou que ainda não havia se divorciado, que na verdade estava
apenas separado - só dando um tempo para pensar melhor sobre as coisas… … E que
por causa do filho pequeno, voltaria pra casa.
-- Mas é só ele crescer e a gente fica junto. Juntos para sempre --.
Ele se apressou em prometer.
Ela se revoltou, esperneou, esbravejou, chorou baldes durante
semanas a fio, mas finalmente convencida de que ele era o homem da sua vida,
aceitou. Afinal, o que eram sete anos para um amor da vida inteira?, argumentou
consigo mesma. E foi assim que o procurou com aquele primeiro ramalhete
amarelo, que gerou tantas reticências e gaguejadas.
Entre juras constrangidas, reataram.
Seguiram inseparáveis dentro das limitações de uma vida dupla - a
dele. Até que, por descuido, ela engravidou e ele a convenceu de que não era o
momento para terem um filho. Ela abortou. Três meses depois ficou sabendo que ele
seria pai novamente. Soube por amigos que a esposa - aquela de quem ele se
separara e pra quem só voltara por causa do filho pequeno - estava grávida de
seis meses. Numa época em que a internet era incipiente e as redes sociais
ainda não existiam, era o boca a boca das relações pessoais que trazia essas
surpresas bombásticas. E não se tratava de fake news.
O rompimento foi quase silencioso. Aquilo doía tanto, que ela mal
conseguia articular o misto de raiva, tristeza, revolta, desalento que lhe
consumia as vísceras. Tudo ardia tanto, que, durante a hora e meia que durou
aquela conversa, ela se limitou a repetir monocordimente quatro palavras,
diante de todas as explicações, justificativas, pedidos de perdão e juras de
amor que ele lhe ofereceu.
— Sai da minha vida.
— Mas...
— Sai da minha vida.
— Você precisa entender que...
— Sai da minha vida. Sai da minha vida. Sai da minha vida.
Assim, como se fosse um mantra. Um mantra que ela repetiu ali, por
noventa minutos, e durante todas as investidas que, nos três meses seguintes,
ele armou para tentar voltar. O bebê nasceu, ela resolveu passar um tempo no
exterior para desapegar. Ficou um ano fora. Ele lhe escreveu todos os dias. Ela
não respondeu, ignorou todos os seus emails. Até o dia em que chegou em casa e
deparou com um buquê de rosas amarelas e o cartão lacônico: “O casamento
acabou. Volta pra mim”.
Ela voltou. Não fez qualquer pergunta; voltou uma semana depois. Ele
a recebeu em lágrimas e com muitos outros buquês de rosas amarelas para marcar
o começo de uma nova vida. E começaram. Alugaram uma casa, para que tudo se
iniciasse do zero, a arrumaram com o que identificavam ser “a cara dos
dois” e se mudaram só com roupas e objetos pessoais.
Tudo parecia um sonho. Até que ele foi ficando calado, quieto, meio
ausente. No começo ela fingiu não perceber, mas à medida que aquilo foi se
tornando uma constante, quis saber.
—
Banzo – ele respondeu
—
Banzo?! Banzo, de quê?
Encurtando uma longa história, ele sentia falta das camisas passadas
e penduradas no armário em ordem de cor; dos sapatos engraxados e energicamente
lustrados no chão do closet; do mamão cortado em cubos e do jornal dobrado
sobre a mesa do café da manhã. Um ritual “de mimos” que não existia, ali,
naquela casa com ela; uma rotina que
pertencia à outra vida que ele deixara pra trás. Que ele quis deixar pra trás.
#Só que não. E embora as hashtags
nem existissem como código de comunicação, foi assim que seis meses depois de
montar a casa dos sonhos, para viver a vida dos sonhos, com a mulher dos
sonhos, ele reatou o casamento anterior.
Ela não aceitou. Passou meses pedindo explicações por cartas,
emails, voice mails e, claro, enviando buquês de rosas -- rosas amarelas. Até
que se convenceu de que não obteria respostas; aquele banzo não era uma mera
recaída. Padeceu para se conformar. Adoeceu para se acostumar Com o tempo, se restabeleceu. Se desfez da
“casa dos sonhos”, voltou para o seu antigo apartamento, mudou o corte de
cabelo, conseguiu um novo emprego, retomou as caminhadas na praia e, entre e
uma e outra, começou a sair com um sujeito que conhecera numa parada pra tomar
água de coco.
Foi quando as saídas começaram a tomar um formato parecido com
namoro, que ele reapareceu na frente do seu prédio com as explicações de
sempre, os pedidos de perdão de sempre, as declarações de amor de sempre e as
rosas de sempre: amarelas, sempre amarelas. É claro que ela sucumbiu e os vinte anos seguintes foram assim: pontuados por grandes gestos de
idas e voltas; marcados por intensas demonstrações de amor e de ódio;
assombrados pela memória dos amigos que foram ficando pelo caminho, quando
alertaram, aconselharam, tomaram partido de uma ou de outra parte. E no meio
disso tudo estavam elas, as rosas. Estavam lá, como estão aqui agora, anônimas
e silenciosas, sobre o caixão em que o corpo dele é velado pela família a que
ela não pertence. Rosas amarelas, sempre amarelas.