Quem sou eu

sábado, 12 de novembro de 2016

Com os Dias Contados / With a Deadline


Um…, dois…, três…

A contagem de cada segundo, para desacelerar a respiração ofegante e conter a vertigem que se anunciava, enquanto o médico vaticinava que ela teria pouco tempo de vida, é a memória mais nítida que a amiga que compartilha essa história, na condição de manter-se no anonimato, guarda do momento em que ficou sabendo que o seu encontro com a morte tinha data marcada.

Aos 57 anos, ela, a quem chamarei de L. para facilitar esta narrativa,  ficou sabendo que um câncer silencioso lhe comera as vísceras.  O diagnóstico tardio, que veio como resultado do check up obrigatório exigido às funções executivas na empresa em que trabalhava, foi preciso: se ela se submetesse a uma cirurgia, com subsequentes jornadas de quimio e radioterapias, poderia viver, com sorte, mais três anos.

Um…, dois…, três…

“E se eu não fizer nada disso? Quanto tempo tenho?” – Quis saber ela, depois de  recuperar a respiração.  

Veneza, o destino escolhido por L. para vencer o medo do mar 
“Não posso precisar”— respondeu o médico, visivelmente surpreendido com a objetividade da pergunta. Mesmo assim, arriscou: “Talvez de oito a dez meses…”

“Com autonomia e qualidade de vida?”— ela continuou.

“Hhhaan!…  ” – O médico engasgou.

“Doutor, eu preciso de uma resposta objetiva”— ela insistiu.

“Seis meses”— ele meio que sussurrou.

“QUANTO?!”—Ela perguntou, elevando o tom da voz.

“Seis meses – ele respondeu, finalmente de forma audível – com autonomia e qualidade de vida, não mais que seis meses. Mas,…”

Um…, dois…, três…

L. não se lembra da preleção que sucedeu esse ‘mas’. Na verdade, só se recorda que, ao deixar o consultório, parou na lanchonete da esquina e pediu um sundae. Um colegial completo (**), que não saboreava há pelo menos trinta anos, sob a determinação de manter-se sempre em forma.--  “Quero morrer magra para ser enterrada de biquini”, cotumava brincar… Pois bem, havia chegado a hora! Ao constatar a ironia, resolveu andar. Caminhou os doze quilômetros que separavam o consultório médico de sua casa. E, nessa caminhada, chorou,  berrou, esbravejou, se revoltou contra o destino e sentiu pena de si mesmo. Experimentou, concentradamente – “eu não podia perder tempo!”--, todos os sentimentos que a psicologia clássica identifica como reações inerentes às situações limite como a sua: negação, raiva/revolta, tristeza, resignação. Resignação, sim; só que não. .

“Eu não podia esperar seis meses, um ano, para digerir tudo aquilo” – explica ela. – “Como não consegui aceitar a alternativa de me submeter a uma cirurgia e, em seguida, enfrentar toda aquela via crucis de tratamentos, que, no final, me dariam uma sobrevida sempre espetada em alguma coisa, eu precisava acelerar.”

Acelerar para sentir, lamentar, chorar, se revoltar, se rebelar, entender, se apaziguar e aceitar que tinha uma doença terminal. Acelerar, porque precisava estar pronta. Pronta para morrer em um curto espaço de tempo – seis meses. Pronta para tentar viver o melhor semestre de toda a sua vida.

Um…, dois…, três.

E nos últimos quatro meses, L vem se dedicando exclusivamente a esse projeto – o projeto de felicidade no tempo que lhe resta.  Se demitiu do emprego que tinha há quase vinte anos – “Precisava de espaço pra mim – de mim comigo”, justifica;  doou todo o guarda-roupa de executiva para um bazar de caridade – “Pra alguém há de servir”;  deu sua benção para o  filho abdicar da carreira promissora no mercado financeiro e seguir a vocação de professor – “Quem sou eu pra dirigir a vida dele?”, reconhece;  retomou as aulas de canto que tanto curtia na adolescência – ‘quem canta seus males espanta’, brinca, recitando, quase cantando, o ditado popular.

Nessa sequência de decisões que ela mesmo define como “revolucionárias”,   fez as pases com o ex-marido, com quem havia rompido há dez anos, quando ele confessou estar apaixonado por uma de suas melhores amigas, -- “Ela (a então amiga) o fez pagar em dobro por tudo o que  ele me fez sofrer, não tenho mais o que perdoar”, reconhece;  tingiu o cabelo com mechas azuis –“Eu também tenho o meu lado rock&roll”, revela;  viajou de navio para Veneza – “Precisava vencer o medo do mar e realizar o sonho de alimentar os pombos da praça de San Marco”, explica a escolha do destino; se engajou em um projeto de voluntariado que ajuda mães solteiras-adolescentes da periferia – “Quero contribuir, de alguma forma, para a geração de boas sementes”, e conclui:

“Sementes que florescerão, frutificarão, quando eu não estiver mais por aqui, mas isso já pouco importa”.

Um…, dois…, três…

Se essa constatação não apazigua a ansiedade de saber (e sentir) que o prazo de validade está vencendo, pelo menos consola: “estou fazendo algo bom com o tempo que resta. Um curto tempo, é verdade, porém necessário para que L. pudesse parar e “olhar de frente para a própria existência, se reconciliar consigo mesmo, zerar diferenças com uns e outros e se reaproximar de tantas almas que, como eu, se não são gêmeas, tem muita semelhança com a sua.

Pelos cálculos do médico que diagnosticou seu câncer pela primeira vez e pelo prognóstico das segundas, terceiras, opiniões que confirmaram aquele primeiro veredicto, L. ainda tem dois meses de vida. Mas o que são dois meses, além da fração matemática de sessenta e um dias, 1.464 horas, 87.840 minutos, 5.270.400 segundos?  

“É tempo suficiente”-- ela responde, prontamente.

Suficiente para que ela seja feliz agora, a cada segundo. Ela consigo mesmo; com as coisas que, para ela, fazem sentido,; com aqueles (eu incluída) que ama e que sabe: a amam, apesar de tudo.  Agora, a cada segundo. A cada um dos 5.270.400 segundos que ainda lhe restam.

Um…, dois…, três…

(*) Sundae colegial – popular nas décadas de 50 e 60, é constituido de uma bola de sorvete de creme, uma bola de sorvete de chocolate, uma porção dupla de marshmellow coroada com farofa de castanha.

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One…, two…, three…

Counting each second to breath smoothly and avoid dizziness is the memory my friend L. keeps live from the moment she was told she had an aggressive cancer and would not last much longer.  Keeping her anonymous was the condition to share this story. The story of a 57 year old woman that chose to last less to live better, when the doctor said she would have three years if she accepted to submit herself to a surgery and then to chemo and radio therapies.

One…, two…, three…

“And how long I will last if I do nothing of this?”—She asked.

“I can not precise”—answered the doctor, clearly surprised by that question. Even though, he shared a guess: “Maybe eight to ten months…”

“I mean, how long with autonomy and quality of life?”--  She insisted.

The doctor choked.
“I need a straight answer, Doc”—She continued.

“Six months”—He whispered.

“HOW LONG?”—She repeated the question, raising her voice.

“Six months”—the doctor repeated louder – with quality of life, not more than six months, but …”

One…, two…, three…

L. does not remember what came after that ‘but’. Actually, she only recalls that, after leaving the doctor’s office, she stopped by the first dining at the corner to have a big ice cream. One of those with a lot of marshmallow that she had not eaten for the last thirty years, determined to keep herself in good shape – “I want to die slim to be buried in bikinis”, she has always joked… So, now it was time! And given the irony, she decided to take a walk.

She walked the twelve miles between the doctor’s office and her home. And while she did it, she bursted out crying, whining, weeping, shouting and feeling sorry for herself. In a short period of time, she felt all the emotions the classic psychology defines as natural feelings related to a borderline situation: denial, anger, sadness, and resignation. Resignation, yes; but not exactly. And she explains:

“I could not deal with that in the normal timeframe of six to twelve months. I simply could not afford the time, considering I had not accepted the surgery and the following treatments. So. I needed to accelerate”.

She needed to accelerate to feel whatever she had to feel, to mourn whatever she hat to mourn, to rebel herself against fate,  to understand what a hell was happening, make peace with it and finally accept she had a terminal illness. She needed to quickly get ready. Ready to die in a short period of time – within six months. Ready to live the best six months of her whole life; something she realized she was eager to do.

One…, two…, three…

Ever since, L. has been dedicating all her efforts to the project of being happy in the time she still having. She quit the job she had for twenty years – “I needed space for myself”, she justifies. She gave away all her executive outfits – “They will be useful to someone else”. She encouraged her son to give up the career in the financial market to follow his real vocation: becoming a teacher. She restarted taking the singing classes she loved when she was a teenager. She made peace with her ex-husband after ten years of a harmful divorce – “Well, he fell in love with one of my best friends, but she made him suffer twice than he made me; so, I think we are even”. She dyed her hair in blue – “I also have my rock&roll side”. She took a cruise to Venice – “It was time to overcome my fear of the sea and make real my dream of feeding San Marco square pigeons. She engaged in a social project to help young single mothers from poor communities.

“Somehow, I want to contribute to generate good seeds” – she says. “Seeds that will blossom when I am not here anymore, but that do not matter”.

One…, two…, three…

This awareness may not have helped her avoid the anxiety of knowing time was short, but it balanced her feelings with the perspective she was making the best use of a short life. According to her medical records, now L. has only two months ahead. What are two months beyond the time fraction of 61 days, 1.464 hours, 87.840 minutes and 5.270.400 seconds?

“It is time enough”—she answers promptly.

It is time enough to be happy today and now. To be happy with herself, with what matters to her and with those she loves (me included) and who love her no matter what, at each second – each of her lasting 5.270.400 ones.


One…, two…, three…

7 comentários:

  1. Sinistro e uma ótima ideia. Quando falar com ela de o meu apoio e admiração. Tive uma prima maravilhosa que fez a mesma coisa:
    viveu. Viveu cada minuto inteiro. até o fim.

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    1. Ju, não precisarei dizer. Ela certamente já leu seu comentário aqui

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  2. Morbidamente lindo. Eu simplesmente não sei o que faria...

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  3. Eu faria exatamente a mesma coisa que L. O ideal seria que nos vivessemos cada dia comos aw fosse o ultimo de nossas vidas ... Seriamos todos muito mais felizes ...

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