Um…, dois…, três…
A contagem de cada segundo,
para desacelerar a respiração ofegante e conter a vertigem que se anunciava,
enquanto o médico vaticinava que ela teria pouco tempo de vida, é a memória
mais nítida que a amiga que compartilha essa história, na condição de manter-se
no anonimato, guarda do momento em que ficou sabendo que o seu encontro com a
morte tinha data marcada.
Aos 57 anos, ela, a quem
chamarei de L. para facilitar esta narrativa, ficou sabendo que um câncer silencioso lhe
comera as vísceras. O diagnóstico tardio,
que veio como resultado do check up obrigatório exigido às funções executivas
na empresa em que trabalhava, foi preciso: se ela se submetesse a uma cirurgia,
com subsequentes jornadas de quimio e radioterapias, poderia viver, com sorte,
mais três anos.
Um…, dois…, três…
“E se eu não fizer nada
disso? Quanto tempo tenho?” – Quis saber ela, depois de recuperar a respiração.
Veneza, o destino escolhido por L. para vencer o medo do mar |
“Não posso precisar”—
respondeu o médico, visivelmente surpreendido com a objetividade da pergunta.
Mesmo assim, arriscou: “Talvez de oito a dez meses…”
“Com autonomia e qualidade de
vida?”— ela continuou.
“Hhhaan!… ” – O médico engasgou.
“Doutor, eu preciso de uma
resposta objetiva”— ela insistiu.
“Seis meses”— ele meio que
sussurrou.
“QUANTO?!”—Ela perguntou,
elevando o tom da voz.
“Seis meses – ele respondeu,
finalmente de forma audível – com autonomia e qualidade de vida, não mais que
seis meses. Mas,…”
Um…, dois…, três…
L. não se lembra da preleção
que sucedeu esse ‘mas’. Na verdade, só se recorda que, ao deixar o consultório,
parou na lanchonete da esquina e pediu um sundae.
Um colegial completo (**), que não saboreava há pelo menos trinta anos, sob a
determinação de manter-se sempre em forma.-- “Quero morrer magra para ser enterrada de
biquini”, cotumava brincar… Pois bem, havia chegado a hora! Ao constatar a
ironia, resolveu andar. Caminhou os doze quilômetros que separavam o
consultório médico de sua casa. E, nessa caminhada, chorou, berrou, esbravejou, se revoltou contra o
destino e sentiu pena de si mesmo. Experimentou, concentradamente – “eu não
podia perder tempo!”--, todos os sentimentos que a psicologia clássica
identifica como reações inerentes às situações limite como a sua: negação,
raiva/revolta, tristeza, resignação. Resignação, sim; só que não. .
“Eu não podia esperar seis
meses, um ano, para digerir tudo aquilo” – explica ela. – “Como não consegui
aceitar a alternativa de me submeter a uma cirurgia e, em seguida, enfrentar
toda aquela via crucis de
tratamentos, que, no final, me dariam uma sobrevida sempre espetada em alguma
coisa, eu precisava acelerar.”
Acelerar para sentir, lamentar,
chorar, se revoltar, se rebelar, entender, se apaziguar e aceitar que tinha uma
doença terminal. Acelerar, porque precisava estar pronta. Pronta para morrer em
um curto espaço de tempo – seis meses. Pronta para tentar viver o melhor
semestre de toda a sua vida.
Um…, dois…, três.
E nos últimos quatro meses, L
vem se dedicando exclusivamente a esse projeto – o projeto de felicidade no
tempo que lhe resta. Se demitiu do
emprego que tinha há quase vinte anos – “Precisava de espaço pra mim – de mim
comigo”, justifica; doou todo o
guarda-roupa de executiva para um bazar de caridade – “Pra alguém há de
servir”; deu sua benção para o filho abdicar da carreira promissora no
mercado financeiro e seguir a vocação de professor – “Quem sou eu pra dirigir a
vida dele?”, reconhece; retomou as aulas
de canto que tanto curtia na adolescência – ‘quem canta seus males espanta’,
brinca, recitando, quase cantando, o ditado popular.
Nessa sequência de decisões
que ela mesmo define como “revolucionárias”, fez as
pases com o ex-marido, com quem havia rompido há dez anos, quando ele confessou
estar apaixonado por uma de suas melhores amigas, -- “Ela (a então amiga) o fez
pagar em dobro por tudo o que ele me fez
sofrer, não tenho mais o que perdoar”, reconhece; tingiu o cabelo com mechas azuis –“Eu também
tenho o meu lado rock&roll”, revela; viajou de navio para Veneza – “Precisava
vencer o medo do mar e realizar o sonho de alimentar os pombos da praça de San
Marco”, explica a escolha do destino; se engajou em um projeto de voluntariado
que ajuda mães solteiras-adolescentes da periferia – “Quero contribuir, de
alguma forma, para a geração de boas sementes”, e conclui:
“Sementes que florescerão,
frutificarão, quando eu não estiver mais por aqui, mas isso já pouco importa”.
Um…, dois…, três…
Se essa constatação não
apazigua a ansiedade de saber (e sentir) que o prazo de validade está vencendo,
pelo menos consola: “estou fazendo algo bom com o tempo que resta. Um curto
tempo, é verdade, porém necessário para que L. pudesse parar e “olhar de frente
para a própria existência, se reconciliar consigo mesmo, zerar diferenças com
uns e outros e se reaproximar de tantas almas que, como eu, se não são gêmeas,
tem muita semelhança com a sua.
Pelos cálculos do médico que
diagnosticou seu câncer pela primeira vez e pelo prognóstico das segundas,
terceiras, opiniões que confirmaram aquele primeiro veredicto, L. ainda tem
dois meses de vida. Mas o que são dois meses, além da fração matemática de sessenta
e um dias, 1.464 horas, 87.840 minutos, 5.270.400 segundos?
“É tempo suficiente”-- ela
responde, prontamente.
Suficiente para que ela seja
feliz agora, a cada segundo. Ela consigo mesmo; com as coisas que, para ela,
fazem sentido,; com aqueles (eu incluída) que ama e que sabe: a amam, apesar de
tudo. Agora, a cada segundo. A cada um
dos 5.270.400 segundos que ainda lhe restam.
Um…, dois…, três…
(*) Sundae colegial – popular nas décadas de 50 e 60,
é constituido de uma bola de sorvete de creme, uma bola de sorvete de
chocolate, uma porção dupla de marshmellow coroada com farofa de castanha.
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One…, two…,
three…
Counting each
second to breath smoothly and avoid dizziness is the memory my friend L. keeps
live from the moment she was told she had an aggressive cancer and would not
last much longer. Keeping her anonymous
was the condition to share this story. The story of a 57 year old woman that
chose to last less to live better, when the doctor said she would have three
years if she accepted to submit herself to a surgery and then to chemo and
radio therapies.
One…, two…,
three…
“And how long
I will last if I do nothing of this?”—She asked.
“I can not
precise”—answered the doctor, clearly surprised by that question. Even though,
he shared a guess: “Maybe eight to ten months…”
“I mean, how
long with autonomy and quality of life?”--
She insisted.
The doctor
choked.
“I need a
straight answer, Doc”—She continued.
“Six months”—He
whispered.
“HOW
LONG?”—She repeated the question, raising her voice.
“Six
months”—the doctor repeated louder – with quality of life, not more than six
months, but …”
One…, two…,
three…
L. does not
remember what came after that ‘but’. Actually, she only recalls that, after
leaving the doctor’s office, she stopped by the first dining at the corner to
have a big ice cream. One of those with a lot of marshmallow that she had not
eaten for the last thirty years, determined to keep herself in good shape – “I
want to die slim to be buried in bikinis”, she has always joked… So, now it was
time! And given the irony, she decided to take a walk.
She walked
the twelve miles between the doctor’s office and her home. And while she did
it, she bursted out crying, whining, weeping, shouting and feeling sorry for
herself. In a short period of time, she felt all the emotions the classic psychology
defines as natural feelings related to a borderline situation: denial, anger,
sadness, and resignation. Resignation, yes; but not exactly. And she explains:
“I could not
deal with that in the normal timeframe of six to twelve months. I simply could
not afford the time, considering I had not accepted the surgery and the
following treatments. So. I needed to accelerate”.
She needed to
accelerate to feel whatever she had to feel, to mourn whatever she hat to
mourn, to rebel herself against fate, to
understand what a hell was happening, make peace with it and finally accept she
had a terminal illness. She needed to quickly get ready. Ready to die in a
short period of time – within six months. Ready to live the best six months of
her whole life; something she realized she was eager to do.
One…, two…,
three…
Ever since,
L. has been dedicating all her efforts to the project of being happy in the
time she still having. She quit the job she had for twenty years – “I needed
space for myself”, she justifies. She gave away all her executive outfits –
“They will be useful to someone else”. She encouraged her son to give up the
career in the financial market to follow his real vocation: becoming a teacher.
She restarted taking the singing classes she loved when she was a teenager. She
made peace with her ex-husband after ten years of a harmful divorce – “Well, he
fell in love with one of my best friends, but she made him suffer twice than he
made me; so, I think we are even”. She dyed her hair in blue – “I also have my
rock&roll side”. She took a cruise to Venice – “It was time to overcome my
fear of the sea and make real my dream of feeding San Marco square pigeons. She
engaged in a social project to help young single mothers from poor communities.
“Somehow, I
want to contribute to generate good seeds” – she says. “Seeds that will blossom
when I am not here anymore, but that do not matter”.
One…, two…,
three…
This
awareness may not have helped her avoid the anxiety of knowing time was short, but
it balanced her feelings with the perspective she was making the best use of a
short life. According to her medical records, now L. has only two months ahead.
What are two months beyond the time fraction of 61 days, 1.464 hours, 87.840
minutes and 5.270.400 seconds?
“It is time
enough”—she answers promptly.
It is time enough
to be happy today and now. To be happy with herself, with what matters to her
and with those she loves (me included) and who love her no matter what, at each
second – each of her lasting 5.270.400 ones.
One…, two…,
three…
Sinistro e uma ótima ideia. Quando falar com ela de o meu apoio e admiração. Tive uma prima maravilhosa que fez a mesma coisa:
ResponderExcluirviveu. Viveu cada minuto inteiro. até o fim.
Ju, não precisarei dizer. Ela certamente já leu seu comentário aqui
ExcluirMorbidamente lindo. Eu simplesmente não sei o que faria...
ResponderExcluirEu também não, Andrew.
ExcluirExemplo incrível de desapego.
ResponderExcluirBota desapego nisso, Bel Toitisie 😔
ResponderExcluirEu faria exatamente a mesma coisa que L. O ideal seria que nos vivessemos cada dia comos aw fosse o ultimo de nossas vidas ... Seriamos todos muito mais felizes ...
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