Dizem que dois bicudos não
se beijam. Deve ser por isso que, em boa parte das nossas vidas, eu e meu pai discordamos
tanto. Bastava que um tivesse um ponto de vista sobre algum assunto, para o
outro ter opinião contrária. E as visões eram sempre tão opostas, que a saída
era sempre evitar as discussões, já que nunca se chegaria a um consenso.
“Melhor deixar pra lá” – minha mãe sempre
argumentava, em tom conciliador e temente a um embate. Até porque, ela sabia: em sua convicção lusitana-salazarista, meu
pai duelaria até a morte para impor sua convicção e eu, na minha posição de ‘filha
única-de-português-autoritário-e-fraca-abusada’, não me esquivaria do
confronto, apesar das minhas deficiências como esgrimista. Com sua doçura e a
tática da conversinha do ‘deixa disso’, ela
persuadia individualmente a mim e a ele a “esquecer a celeuma”.
Meu pai, depois de receber alta e voltar pra casa (foto Luc Bueno) |
Esse misto de sentimentos e
reflexões vem à tona, depois de uma semana marcada por sustos. Meu pai teve que ser internado por conta de
uma pneumonia, infecção que, nos seus quase 99 anos, está longe do trivial. Minha mãe, que é cardiaca, quase teve um
ataque, ao constatar que aproveitei sua ausência de casa, ao acompanhá-lo parte
do tempo no hospital, para adaptar um dos banheiros às necessidades dele, que
hoje é um quase cadeirante. Aos 92 anos, ela se tornou obsessiva na
determinação de manter tudo como sempre foi; qualquer alteração na rotina a
desestabiliza. E, caramba (!), a vida, a
passagem do tempo, impõe mudanças. Queiramos ou não, gostemos ou não. Mas vai convencer a D.Lydia que 'nada do que foi será', citando aqui Lulu Santos, para imprimir um toque de leveza.
Sobressaltos e malcriações
devidamente toureados, devolvemos o casal nonagenário a sua rotina. A sua
vidinha de ‘passarinhos’ , em que um não vive sem bicar o pescoço do outro, em
que a existência se reafirma em pequenos gestos, como: cochilar de mãos dadas,
no sofá, diante da televisão, tomar um
cafezinho ‘passado na hora’, acompanhado de bolo caseiro, ou hidratar as mãos
com óleo de amêndoas para tornar o cafuné mais macio.
E é sob o impacto desses
pequenos gestos ainda tão cheios de vida, que abro uma garrafa de vinho para
celebrar a semana que superamos. Celebrar e amortecer as aflições que
conseguimos deixar para trás – sabe-se lá até quando. Celebrar e revisitar o inventário das diferenças
e semelhanças que sempre tive com meu pai. No meio delas, as lembranças de
quando, aos quatro anos, me enfiava sob
a mesa de jantar para ouvir a conversa dos adultos e ali adormecia; acordava
sempre resgatada por ele me levando no colo para o quarto. As recordações de
quando, aos oito, aprendi a andar de bicicleta, com ele segurando e soltando o selim, e falando baixinho no meu ouvido:”vai, pedala e olha pra frente, que você consegue, você consegue!”. As memórias das férias de julho, em que sempre viajávamos juntos; foi numa
delas que fizemos um piquenique inesquecível em Paquetá.
As diferenças realmente
surgiram a partir da minha adolescência. E eram tão grandes que nos infligiram
esse jogo de contrários. Um jogo que parecia sem
convergência mesmo no fundo do espelho. Diferenças que nos motivaram a formular
a equação binária que, em um momento, nos levou pra longe – ele, aos 15
anos, quando se rebelou contra o pai em Portugal e veio tentar a sorte no
Brasil; eu, aos 17, quando, sem arroubos de rebeldia, mas alinhavando, sim, uma ruptura, saí de Petrópolis para estudar jornalismo no Rio de Janeiro.
E lá ficamos, nos nossos
destinos. Cada um no seu tempo. Cada um do seu jeito. Ambos batalhando por seus
sonhos e suas convicções. Ambos fincando alicerces, que permitissem provar
independência e galgar alturas que possibilitassem almejar infinitos ainda mais
longíquos. Ambos, solitariamente, enfrentando a vida que escolhemos. Até que, um dia, numa esquina qualquer do tempo, abrimos mão da cordialidade formal e trombamos novamente. Por algum motivo, já não lembro qual, nos estranhamos e trombamos. Nos espezinhamos e trombamos, E, finalmente, brigamos. Brigamos
pra valer, até perdermos o fôlego, até não sabermos mais por que estávamos
brigando. E foi nessa ignorância que reconhecemos
nossas semelhanças. Recuperamos a ternura de um beijo de boa noite, a intensidade do abraço apertado para matar a saudade. Encontramos, então, no outro aquilo que sempre fomos e somos: dois bicudos. Dois bicudos que
hoje se beijam; que, às vezes, ainda se estranham, mas se beijam.
E aqui estamos, agora,
apaziguados. Eu, meio embriagada, depois de tomar uma garrafa de vinho e remexer em
todas essas emoções; ele, cochilando no sofá, enquanto minha mãe lhe prepara um
cafezinho. Registro assim esse papo de bêbado; para me lembrar do que é essencial, se pelas armadilhas da memória, eu vier a esquecer.
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And here we are, now, in
peace. Me, a little bit drunk, after a bottle of wine and a dump of emotions;
him, taking a nap on the coach while my mom makes coffee. I document here this drunk
yard’s conversation to create a reminder of what is essential in life, just in
case my memory traps me and erases this week and its emotions from my mind and
heart. I simply want to register: I do not want to forget I can play well
together with my dad, no matter how similar we are.
(*) In the seventies this was not common in Brazil
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People who are too much alike
don't play well together, states the saying. Maybe that’s the reason why in most of our
lives my daddy and I have disagreed so much. If one of us had a point of view
on a matter, that was enough to make the other think the opposite. And the
views were always so different that the best way of dealing with them was
avoiding discussions.
“Let it go”—my mom always
said to both sides, trying to avoid confrontations and watching over peace at
home. She knew that my father, with his sense of authority, would fight to
death to impose his point of view and that I would die to not compromise. With
her sweet approach, she succeeded in persuading both of us to forget the
hubbub.
Hubbub. What an old word.
It is as old as the thoughts and feelings I kept in silence over the years to
benefit a peaceful family life. Thoughts and feelings – today, I know – he also
refrained to pursue the same goal. And we lived most of our lives this way: embroidering
the silences that kept us civilized equidistant. Maybe more distant from each other than we had
wanted and/or planned to be. Maybe more defensive with each other than we
needed.
This mix of thoughts and
feelings pops up right after a scary week. My father had to be interned in a
hospital with pneumonia, which is not a trivial infection for his almost 99
years old. My mom, who is 92 and cardiac, almost had a heart attack when she
discovered I took the opportunity they were both at the hospital to adapt one
of the bathrooms of their apartment to wheelchair users’ needs (my dad is
almost invalid). At 92, she is obsessively determined in keeping things as they
have always been. For God’s sake (!), life and time demand change, no matter
what we want or like. OK, but try to convince Mrs. Lydia this is true.
OK. With overcame shocks and
alarms, we brought the nonagenarian couple back to their routine.
Their ‘little birds’ routine’, in which one does not live without pecking with
the bill the other’s neck, in which the existence proves itself through small
gestures, such as: taking a nap together in front of the TV set and drinking
fresh coffee with a piece of home made cake.
It is under the impact of
these small gestures full of life and love, that I open a bottle of wine to
celebrate the week we were able to overcome. To celebrate and calm down the
afflictions we left behind – only God knows which ones will be the next. To celebrate
and revisit the inventory of differences and resemblances I have ever had with
my dad. Among them, I find memories. I remember when I was four years old and
hide myself below the dinner table to listen to adults ‘conversation, fell to
sleep and woke up on my dad’s lap, being carried to bed. I remember when I was
eight and he taught me how to ride a bike, holding the saddle and whispering on
my ear: “look ahead and pedal, you can make it! Yes, you can!”. I remember when
we left together on vacations every July – one of our unforgettable pick nicks
happened in one of them.
Actually, our
disagreements popped up when I was a teenager. And they were so big that
imposed us opposite sides without compromises. The same kind of conflict he had
with his father, when he was fifteen and drove him to leave Portugal to build a life in Brazil. The situation that encouraged me, when I
was seventeen, to live my hometown to go to an university in a big city (*).
So, both of us met our
fates. Each one in its own time. Each one in its own way. Both of us pursuing
our dreams and lonely facing our choices. Till the day, at one of those corners
life draws to make you stop, we decided to forget the familiar civilized
manners to look each other in the eyes. And we argued. We argued, argued and
argued, till the moment we were so tired to remember why we were arguing. Till the moment we looked at each other's eyes,
recognized how similar we were and rescued the tenderness of a goodnight kiss,
of a hug that says ‘how I missed you!’.
(*) In the seventies this was not common in Brazil
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Esses velhinhos são f... Eu sei porque tenho um aqui. Mais novo que o seu mas velhinho. Mas no final das contas eles são importantes pra nós. E tem seus momentos legais com a gente...
ResponderExcluirE a gente vai ficar igual se chegar às idade deles Rsrsrs
Excluir"Bordando nas sombras da insônia". Que imagem linda. Que belo texto. Beijos
ResponderExcluirObrigada, Bel
ExcluirVera, você tem tanta sorte de poder relembrar tudo isso, entender e ao mesmo tempo se apaziguar, tento eles ao seu lado. Lindo texto, parabéns.
ResponderExcluirTambém acho, Andrea. E nada como a passagem do tempo, a maturidade, para nos fazer entender...
ExcluirCyberzinha, espero que continue tudo "sob controle" com o Sr. Gomes. Nos temos um historico parecido com a figura paterna, ambos corajosos imigrantes, individualistas com temperamentos e conviccoes fortes. Somos prova viva de outro famoso ditado, "tal pai, tal filha"... O ironico no meu caso foi que eu e meu pai passamos a nos dar super bem depois que eu emigrei pro Canada ... A grande distancia fisica deu uma nova perspectiva e abriu espaco para uma melhor compreensao entre nos. Sem falar das saudades que tornaram nossos momentos junto mais ternos e preciosos. Beijos grandes nessa dupla muito querida de filha e pai bicudos
ResponderExcluirCyber Cyber, não é a toa que nos tornamos amigas de fé, não é mesmo? E entendo totalmente o que a distância fez por vc e seu pai. No meu caso, ela, alguns anos (ralados) de psicanálise, e a passagem do tempo foram necessários para me fazer perceber o que é precioso e essencial. E, claro, reconhecendo e respeitando as minhas próprias limitações :)
ExcluirBeleza em detalhes: na história, na poesia do texto, na coragem em se expor, na determinação em entender que dos desencontros renascem os relacionamentos eternos entre pais e filhos. Mais uma vez, Verinha, parabéns pelo conteúdo que compartilha em seu blog.
ResponderExcluirObrigada, Dibbbah, pela generosidade das palavras e, sobretudo, por continuar acompanhando o 2xTrinta.
ExcluirVera, já vi tantas vezes esse filme. Vale a pena, viu!Faça tudo que estiver ao seu alcance agora,para que no dia que não tiver mais o que fazer sinta-se em paz pelo tudo que fez. Se prepara! Eles são assim mesmo (teimosinhos, resistentes às mudanças necessárias), e como fizeram conosco repita:É para teu bem, pai/mãe!! Se precisar bater papo sobre "pais idosos e a difícil tarefa para convencê-los" ... tô aqui, viu? Abraço.
ResponderExcluir'...É para o seu bem' tem sido o meu argumento permanente -- quase um mantra :) Obrigada pela empatia e pela disponibilidade para conversas. Gostaria de identificar quem fala sob o codinome de Agorinha Mesmo.
ExcluirSou eu a MCarmo O. Monteiro(Facebook). Salvei o nome do blog e do canal e agora a assinatura ficou assim.Desculpe. Abraço longo
ExcluirObrigada mais uma vez por acompanhar o blog.
ExcluirNossa velhinha se foi há alguns meses.... , mas já ia num alzheimer intermediário.... que bom que ainda convive com eles ...e que ainda se bicam ... e se beijam!! (olha, tem um fôlefo ao invés de fôlego!)
ResponderExcluirHomero, Minha mãe também tem um pouco de alzheimer e sua resistência à mudanças está relacionada à doença. A vida de 'passarinhos'com bicadinhas e beijinhos é um dos fatores que a mantem conectada com a realidade :) . Em tempo: vou corrigir o 'fôlego'; obrigada pelo toque.
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