O ronco da motosserra invade o
apartamento, na manhã ensolarada. Uma manhã de quase primavera cortada pelo
barulho ensurdecedor, cuja origem demoro a identificar. Ao suspender a persiana
da janela do quarto, deparo com o fato desolador: o ipê amarelo que, faz parte
da paisagem que minha vista alcança, desde que me mudei para São Paulo, há
treze anos, está sendo derrubado. Muitos dos seus galhos já decepados jazem na
calçada do outro lado da rua. As florzinhas amarelas, que principiavam a brotar
para celebrar a estação que começou ontem,
misturam-se à serragem que vem dos troncos e que começa a cobrir o
passeio. Transeuntes param diante da devastação e perguntam por que estão
cortando a árvore quase centenária. A resposta se restringe a uma só palavra:
adoeceu.
Ipê amarelo derrubado há uma semana. Foto de Lucillo Bueno |
“Adoeceu?! Adoeceu de quê? Por quê?”
A voz da senhora idosa interpelando o funcionário da prefeitura prende a minha
atenção. E desperta a minha simpatia, quando, sem esperar pela resposta, ela
mesmo emenda:
“Adoeceu, porque ninguém cuidou,
porque ninguém pensou que uma árvore de pouco menos de cem anos requer cuidados
que um arbusto jovem dispensa. Mas pra que ter esse trabalho, não é mesmo? É
mais fácil deixar morrer e cortar logo fora. Depois, substitui-se por um
coqueirinho de plástico para compor o canteiro… O triste é que geralmente quem
faz isso com as árvores, faz também com os animais e muitas vezes até mesmo com
a gente”…
Só então percebo que ela é seguida
por um cachorrinho com apenas três patas e que está acompanhada por uma jovem que
empurra uma cadeira-de-rodas vazia. Ao constatar que o corte do ipê será
demorado, ela dá instruções à moça para posicionar o assento, de forma que ela
possa acompanhar tudo da outra esquina.
Ela se senta e logo o cão se acomoda no seu colo. Os dois ficam ali a manhà
toda; ele enroscado no que julga ser um abraço, ela imóvel e muda, como quem vela o corpo de
um defunto.
Eu, detrás da vidraça, compartilho o
seu luto. Posso enxergar todas as primaveras que, ao longo dos anos, ela viu
florescer na copa daquela árvore e que, aqui, com ela – a árvore -- morrem,
Posso quase tocar todas as esperanças que ela, a senhorinha, alimentou, ao ver o ipê
vestir-se exuberante em amarelo, na chegada de cada 22 de setembro. Penso nos passarinhos que, durante todos os
anos em que aqui vivo, me acordaram de madrugada com a cantoria antecipatória do raiar do dia e me pergunto
onde agora eles farão pouso . Quase choro, ao cogitar que naqueles galhos
arrancados poderia haver ninhos, filhotes, ovos…
Me deixo ficar ali, no mesmo lugar
onde o olhar daquela senhora paira. Ambas choramos nossas memórias, nossas
esperanças, a cada galho que a motosserra corta. Não importa há quanto tempo
elas existiam, era na copa daquela árvore que se renovavam -- a cada ano, a
cada primavera. Sinto uma pressão no
peito, como se a motosserra me cortasse ao meio; como se extirpasse todas as
primaveras do calendário, todas as esperanças a elas atreladas. Choro
silenciosamente, pela árvore, peloa
pássaros que ali já não moram, por todas as florestas que vêm sendo dizimadas,
por mim, por aquela senhora com seu cão manco, por nós, pelo planeta. Sou a carpideira
silente da nossa própria sorte.
Vejo, então, quando o cachorro se
espreguiça no colo da senhora, lhe dá umas três lambidas do queixo à testa e,
equilibrando-se em suas três patas, salta de banda sobre a serragem tingida de
amarelo que agora cobre o chão. A senhora se levanta, faz um sinal para que a
acompanhante se ocupe da cadeira-de-rodas e sai caminhando lentamente, com o
cão trançando os passos capengas entre as suas pernas. Meu olhar os acompanha até saírem do meu
ângulo de visão. Volta-se, então, para o canteiro vazio e para os pedaços da
antiga árvore que vão sendo empilhados num caminhão. Logo, logo, tudo estará limpo;
a paisagem descampada permanecerá como se o ipê amarelo nunca houvesse existido
ali.
Fecho os olhos para conter a onda de
lágrimas que mais uma vez se sobrepõe e, quando os abro, dou de cara com um bem-te-vi no meu parapeito,
pulando pra lá e pra cá. Ele emite o seu canto singular a plenos pulmões,
como se quisesse protestar e, ao mesmo tempo, me consolar. Dos outros cantos da
rua, outros bem-te-vis imediatamente respondem. Cantam como se recitassem
homilías pela morte do ipê, cantam para não nos deixar esquecer que primaveras
sempre hão de existir.
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The sound of the chainsaw takes over the
apartment in a sunny morning. A morning of almost spring cut by the deafening
noise, whose origin I do not identify right away. When I hang the shutter from
the bedroom window, I find the desolate fact: the yellow ipê, which is part of
my landscape, since I moved to São Paulo thirteen years ago, is being
overthrown. Many of its broken branches lie on the sidewalk across the street.
The yellow flowers, which began to sprout to celebrate the season that began
yesterday, mix with the sawdust that comes from the trunks and begins to cover
the pavement. Passers-by stop in front of the devastation and ask why they are
cutting the almost centennial tree. The answer is summarized in three words: it got sick.
"Got sick?! How come? Why? "The old
lady's voice talking to the city clerk catches my attention and sympathy, when,
without waiting for the answer, she continues:
"The three got sick because no one took
care of it, because no one thought that an almost centennial tree requires care
that a young bush dispenses. But why have that work, right? It is easier to let
it die, cut it off and replace it by a plastic coconut three, right? The sad
thing is that usually who does this with trees, also does it with animals and
often even with people "...
Only then do I realize that she is followed by
a three-leg puppy and is accompanied by a young woman pushing an empty
wheelchair. When she notices that the cutting of the ipê will take a long time,
she instructs her companion to position the seat, so that she can follow
everything from the other corner. She sits down and the dog immediately sits on
her lap. They stay there all morning; he curled up in what he judges to be a
hug, her motionless and silent, as taking part in a funeral.
From behind the windowpane, I share her
mourning. I can see all the springs she has seen bloom in the canopy of that
tree over the years; all the springs that die now. I can almost touch all the
hopes she has felt each time she saw the three exuberantly dresses in yellow. I
think about the little birds that, during all the years I have been living
here, have awakened me singing at dawn and ask myself where they will live now.
I almost cry, wondering that on those plucked branches there might be nests,
puppies, eggs...
I let myself stay in the same place where that
lady's gaze hangs. We both mourn our memories, our hopes, every bough the chainsaw
cuts. No matter how long they existed, it was in the canopy of that tree that
they were renewed - every year, every spring. I feel a pressure on my chest, as
if the chainsaw had cut me in half; as if it had extirpated all the springs of
the calendar, all the hopes attached to them. I cry quietly, for the tree, for
the birds that no longer live there, for all the forests that have been decimated,
for me, for that lady with her lame dog, for us, for the planet. I am the
silent mourner of our own fate.
Then, I see when the dog stretches on the lady’s
lap, gives her three licks from the chin to the forehead and, balancing on its
three legs, leaps on the yellow-colored sawdust that now covers the ground. The
lady stands up, asks the companion to take care of the wheelchair and walks
slowly, with the dog braiding the footsteps between her legs. My gaze follows
them until they come out of my angle of vision. It turns, then, to the empty flowerbed
and the pieces of the old tree that are being piled in a truck. Soon, soon,
everything will be clean; the open landscape will remain as if the yellow ipe
had never existed there.
I close my eyes to contain the wave of tears
that once again floods my soul. When I open them, I see a small bird
(bem-te-vi) on my parapet, jumping back and forth. He utters his singular chant
at the top of his lungs, as if to protest and at the same time console me. From
the other corners of the street, other birds immediately respond. They sing as
if reciting homilies for the death of ipê, they sing to not let us forget that
springs will always exist.