Quem sou eu

sábado, 23 de setembro de 2017

Reflexões de Primavera II / Spring Thoughts II

O ronco da motosserra invade o apartamento, na manhã ensolarada. Uma manhã de quase primavera cortada pelo barulho ensurdecedor, cuja origem demoro a identificar. Ao suspender a persiana da janela do quarto, deparo com o fato desolador: o ipê amarelo que, faz parte da paisagem que minha vista alcança, desde que me mudei para São Paulo, há treze anos, está sendo derrubado. Muitos dos seus galhos já decepados jazem na calçada do outro lado da rua. As florzinhas amarelas, que principiavam a brotar para celebrar a estação que começou ontem,  misturam-se à serragem que vem dos troncos e que começa a cobrir o passeio. Transeuntes param diante da devastação e perguntam por que estão cortando a árvore quase centenária. A resposta se restringe a uma só palavra: adoeceu.

Ipê amarelo derrubado há uma semana. Foto de Lucillo Bueno
“Adoeceu?! Adoeceu de quê? Por quê?” A voz da senhora idosa interpelando o funcionário da prefeitura prende a minha atenção. E desperta a minha simpatia, quando, sem esperar pela resposta, ela mesmo emenda:

“Adoeceu, porque ninguém cuidou, porque ninguém pensou que uma árvore de pouco menos de cem anos requer cuidados que um arbusto jovem dispensa. Mas pra que ter esse trabalho, não é mesmo? É mais fácil deixar morrer e cortar logo fora. Depois, substitui-se por um coqueirinho de plástico para compor o canteiro… O triste é que geralmente quem faz isso com as árvores, faz também com os animais e muitas vezes até mesmo com a gente”…

Só então percebo que ela é seguida por um cachorrinho com apenas três patas e que está acompanhada por uma jovem que empurra uma cadeira-de-rodas vazia. Ao constatar que o corte do ipê será demorado, ela dá instruções à moça para posicionar o assento, de forma que ela possa acompanhar  tudo da outra esquina. Ela se senta e logo o cão se acomoda no seu colo. Os dois ficam ali a manhà toda; ele enroscado no que julga ser um abraço,  ela imóvel e muda, como quem vela o corpo de um defunto.

Eu, detrás da vidraça, compartilho o seu luto. Posso enxergar todas as primaveras que, ao longo dos anos, ela viu florescer na copa daquela árvore e que, aqui, com ela – a árvore -- morrem, Posso quase tocar todas as esperanças que ela,  a senhorinha, alimentou, ao ver o ipê vestir-se exuberante em amarelo, na chegada de cada 22 de setembro.  Penso nos passarinhos que, durante todos os anos em que aqui vivo, me acordaram de madrugada com a cantoria  antecipatória do raiar do dia e me pergunto onde agora eles farão pouso . Quase choro, ao cogitar que naqueles galhos arrancados poderia haver ninhos, filhotes, ovos…
Me deixo ficar ali, no mesmo lugar onde o olhar daquela senhora paira. Ambas choramos nossas memórias, nossas esperanças, a cada galho que a motosserra corta. Não importa há quanto tempo elas existiam, era na copa daquela árvore que se renovavam -- a cada ano, a cada primavera.  Sinto uma pressão no peito, como se a motosserra me cortasse ao meio; como se extirpasse todas as primaveras do calendário, todas as esperanças a elas atreladas. Choro silenciosamente,  pela árvore, peloa pássaros que ali já não moram, por todas as florestas que vêm sendo dizimadas, por mim, por aquela senhora com seu cão manco, por nós, pelo planeta. Sou a carpideira silente da nossa própria sorte.

Vejo, então, quando o cachorro se espreguiça no colo da senhora, lhe dá umas três lambidas do queixo à testa e, equilibrando-se em suas três patas, salta de banda sobre a serragem tingida de amarelo que agora cobre o chão. A senhora se levanta, faz um sinal para que a acompanhante se ocupe da cadeira-de-rodas e sai caminhando lentamente, com o cão trançando os passos capengas entre as suas pernas.  Meu olhar os acompanha até saírem do meu ângulo de visão. Volta-se, então, para o canteiro vazio e para os pedaços da antiga árvore que vão sendo empilhados num caminhão. Logo, logo, tudo estará limpo; a paisagem descampada permanecerá como se o ipê amarelo nunca houvesse existido ali.

Fecho os olhos para conter a onda de lágrimas que mais uma vez se sobrepõe e, quando os abro,  dou de cara com um bem-te-vi no meu parapeito, pulando pra lá e pra cá.  Ele  emite o seu canto singular a plenos pulmões, como se quisesse protestar e, ao mesmo tempo, me consolar. Dos outros cantos da rua, outros bem-te-vis imediatamente respondem. Cantam como se recitassem homilías pela morte do ipê, cantam para não nos deixar esquecer que primaveras sempre hão de existir.

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The sound of the chainsaw takes over the apartment in a sunny morning. A morning of almost spring cut by the deafening noise, whose origin I do not identify right away. When I hang the shutter from the bedroom window, I find the desolate fact: the yellow ipê, which is part of my landscape, since I moved to São Paulo thirteen years ago, is being overthrown. Many of its broken branches lie on the sidewalk across the street. The yellow flowers, which began to sprout to celebrate the season that began yesterday, mix with the sawdust that comes from the trunks and begins to cover the pavement. Passers-by stop in front of the devastation and ask why they are cutting the almost centennial tree. The answer is summarized in three words: it got sick.

"Got sick?! How come? Why? "The old lady's voice talking to the city clerk catches my attention and sympathy, when, without waiting for the answer, she continues:

"The three got sick because no one took care of it, because no one thought that an almost centennial tree requires care that a young bush dispenses. But why have that work, right? It is easier to let it die, cut it off and replace it by a plastic coconut three, right? The sad thing is that usually who does this with trees, also does it with animals and often even with people "...

Only then do I realize that she is followed by a three-leg puppy and is accompanied by a young woman pushing an empty wheelchair. When she notices that the cutting of the ipê will take a long time, she instructs her companion to position the seat, so that she can follow everything from the other corner. She sits down and the dog immediately sits on her lap. They stay there all morning; he curled up in what he judges to be a hug, her motionless and silent, as taking part in a funeral.

From behind the windowpane, I share her mourning. I can see all the springs she has seen bloom in the canopy of that tree over the years; all the springs that die now. I can almost touch all the hopes she has felt each time she saw the three exuberantly dresses in yellow. I think about the little birds that, during all the years I have been living here, have awakened me singing at dawn and ask myself where they will live now. I almost cry, wondering that on those plucked branches there might be nests, puppies, eggs...
I let myself stay in the same place where that lady's gaze hangs. We both mourn our memories, our hopes, every bough the chainsaw cuts. No matter how long they existed, it was in the canopy of that tree that they were renewed - every year, every spring. I feel a pressure on my chest, as if the chainsaw had cut me in half; as if it had extirpated all the springs of the calendar, all the hopes attached to them. I cry quietly, for the tree, for the birds that no longer live there, for all the forests that have been decimated, for me, for that lady with her lame dog, for us, for the planet. I am the silent mourner of our own fate.

Then, I see when the dog stretches on the lady’s lap, gives her three licks from the chin to the forehead and, balancing on its three legs, leaps on the yellow-colored sawdust that now covers the ground. The lady stands up, asks the companion to take care of the wheelchair and walks slowly, with the dog braiding the footsteps between her legs. My gaze follows them until they come out of my angle of vision. It turns, then, to the empty flowerbed and the pieces of the old tree that are being piled in a truck. Soon, soon, everything will be clean; the open landscape will remain as if the yellow ipe had never existed there.

I close my eyes to contain the wave of tears that once again floods my soul. When I open them, I see a small bird (bem-te-vi) on my parapet, jumping back and forth. He utters his singular chant at the top of his lungs, as if to protest and at the same time console me. From the other corners of the street, other birds immediately respond. They sing as if reciting homilies for the death of ipê, they sing to not let us forget that springs will always exist.


sábado, 9 de setembro de 2017

Entre mim e a mulher do fim do mundo / Between me and the end of the world woman

O rosto marcante da cantora Elza Soares preenche a tela do meu smartphone.  O close no seu olhar de esfinge prende a minha atenção – decifra-me ou te devoro… Sua voz rascante marca os compassos de um tecno-samba de raíz, celebra um carnaval quase apocaliptico. Seu agudo me deixa sem respiração, explode nos versos que a definem como a mulher do fim do mundo. Aquela que quebra a cara, mas canta até o final. Canta por mim, por você, por todas nós

Elza Soares - Imagem YouTube campanha Natura
Mais uma vez a Natura rompe paradigmas, na campanha publicitária que reforça o posicionamento da marca como a Casa de Perfumaria do Brasil (*), ao lançar mão da música e da presença de Elza, para abordar o feminino pelo avesso do que culturalmente sempre lhe foi atribuído. Há três semanas na web e na tevê, o comercial toca na essência daquilo que somos: fortes, intensas, poderosas, ousadas. Me representa e me faz pensar sobre essas qualidades, que tantas de nós ainda desconhecem ou não conseguem incorporar. Me faz refletir sobre todas as vezes em que eu mesma não consegui exercê-las, ou tive que usar estratagemas para fazê-lo.

Não foram poucas.

Começou ainda na infância, quando as chamadas brincadeiras masculinas de pular carniça e disputar torneios de bola de gude, me pareceram mais divertidas do que algumas das que estavam reservadas às meninas. Como minha mãe sempre dizia que ‘não ficava bem para uma mocinha de bons modos se misturar com um bando de meninos’, convenci um primo a me ensinar os dois jogos. Aprendi e os ensinei as minhas amigas, que, para desespero materno, a eles aderiram com a mesma naturalidade com que, até então, só brincavam de roda ou de passar anel. Ampliamos nosso cardápio de diversão e fomos mais felizes por podermos contar com novas opções.  Ali aprendi a importância da liberdade de escolha.

E foi por tanto prezar essa liberdade que, na adolescência, escolhi conscientemente não desafiar a autoridade do meu pai. Conservador, muito apegado ao seu papel de ‘chefe da família’,  ele tinha princípios morais bastante rigídos e deixava bem claro: não estava disposto a discuti-los comigo. Portanto, não importava se a moda ditava a  minissaia como padrão, minhas bainhas eram milimetricamente medidas a cinco dedos acima dos joelhos; não fazia a menor diferença se todas as minhas amigas iam a festinhas no fim de semana e podiam chegar em casa depois da meia-noite, obedecer ao horário de Cinderela era condição para eu ter vida social – e, mesmo assim, não obtinha permissão para participar de todas as festas – “moça de família não pode ficar muito vista; corre o risco de ficar falada”…

Ah!

Não lembro quantas vezes fui chorar no quarto, ao ouvir pérolas como essa, nem das tantas outras em que, querendo me ajudar, minha mãe tentou sem sucesso argumentar com ele e acabou vindo chorar comigo. Mas me recordo, sim, de ter entendido muito cedo que enfrentá-lo seria como bater contra uma parede. Escolhi então contorná-la. Não bater de frente, para alcançar meu objetivo de longo prazo: ir para o Rio de Janeiro, estudar jornalismo e, a partir daí, construir minha independência. Durante anos, tive que bancar a jovem cordata e ser resiliente às determinações daquele que ditava com desenvoltura a palavra final, é verdade. Em contrapartida, consegui que ele não emparedasse meu sonho. Aprendi ali a escolher as brigas em que iria me engajar explicitamente.

Valeu a pena.

Assim como valeu a pena ter engolido uma meia dúzia de verdades que gostaria de ter dito a alguns outros homens, que, em papéis diferentes, passaram pela minha vida. O professor que subestimou minha inteligência e aconselhou que eu buscasse uma profissão ‘mais feminina’; o namorado que questionou a adequação de algumas amizades que eu cultivava; o chefe que me preteriu em uma promoção, porque, na comparação de competências, o colega que levou o cargo tinha ‘uma família para sustentar’; o cliente que se insinuou num convite, digamos, pouco ortodoxo, depois de uma emergência de trabalho que demandou reuniões que avançaram noite adentro.  Em todas essas situações,  me fiz de desentendida, mudei de assunto e segui meu caminho. Guardei a saliva para confrontos que realmente fariam a diferença na minha vida, como: a mudança de profissão; a decisão de não ter filhos; a escolha por não pagar qualquer preço para não ficar sozinha; a opção de voltar a casar, porque encontrei alguém que vale o esforço.

Sei que, se comparado ao que tantas mulheres enfrentam, meu relato pode soar como bravata. Conheço muitas que ainda se escondem sob o manto da submissão, para não irritar, não provocar, não desacatar e, assim, poderem sobreviver. Reconheço outras tantas que se afirmam na rebeldia e não estão nem aí, se irritam, provocam, desacatam – vivem ferozmente, ponto. Sei que existem mulheres muito mais fortes, mais intensas, mais poderosas e ousadas do que eu. É rica essa diversidade.  E é ela que faz eu me reconhecer  nesse samba-taquicardia, cantado por Elza. É ela que dá voz a todas nós, mulheres do início e final dos tempos.

(*) Link para vídeo YouTube, campanha da Natura: https://www.youtube.com/watch?v=FYMGyMH_fUo  
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Elza Soares’face (*) fills the screen of my smartphone. The close on her sphinxlike gaze catches my attention – ‘ decipher me or I will devour you’ ... Her rasping voice marks the rhythm of a techno-samba, it celebrates an almost apocalyptic carnival. Its sharpness makes me breathless, it explodes in the verses that define her as the woman of the end of the world. The one that breaks the face, but keeps singing until the end. She sings for me, for you, for all of us.

Once again, Natura breaks paradigms in the advertising campaign that reinforces its brand positioning as the Brazilian Perfumery House, by using Elza’s music and presence to approach what is feminine from the opposite side of what has been always culturally attributed to it.  On TV and on the Web for three weeks now, the ad touches on the essence of what we are: strong, intense, powerful, and bold. It represents me and makes me think about those qualities, which so many of us still do not know or cannot incorporate. It makes me think about all the times I have not been able to exercise them myself, or I had to use stratagems to do so.

Not a few.

It began as a child, when the so-called jumped-up jokes and martial arts tournaments seemed to me to be more fun than some of those reserved for girls. Since my mother always said, 'a good-natured girl would never look good mingling with a bunch of boys,' I persuaded a cousin to teach me both games. I learned them and taught my friends, who, to their maternal despair, adopted them with the same neutrality with which, until then, they only played with dolls. We expanded our fun menu and were happier because we could count on new options. There I learned the importance of freedom of choice.

For cherishing this freedom, as a teenager I consciously chose not to challenge my father's authority. Conservative, very attached to his role as 'head of the family', he had very rigid moral principles and made it very clear: he was not willing to discuss them with me. So, it did not matter if fashion dictated the miniskirt as a pattern, my sheaths were mill metrically measured five fingers above my knees; it did not make any difference if all my friends went to weekend parties and could get home after midnight, observing Cinderella's schedule was a prerequisite for me to have a social life - and yet I did not get permission to participate in all parties - "we need to preserve your reputation"...

Ah!

I do not remember how many times I cried in my room, after hearing things like that, or how many others my mom tried to argue with him unsuccessfully and joined me in crying. But I do remember having understood too soon that confronting him would be like hitting a wall. I chose then to avoid it to reach my long-term goal: to move to Rio de Janeiro, study journalism and, from there, build my independence. For years, I had to play the young yes-girl role, it is true. On the other hand, I earned his trust and he supported my professional dream. I learned there to choose fights in which I would engage explicitly.

Worth it.

Just as it was worth having swallowed a half dozen words that I wish I had told a few other men, who in different roles, passed through my life. The teacher who underestimated my intelligence and advised me to pursue a 'more feminine' profession; the boyfriend who questioned the suitability of some friendships I cultivated; the boss who precluded me from a promotion, because, in comparing skills, the colleague who took the job had 'a family to support'; the client who insinuated himself into an invitation, let's say, unorthodox, after a work emergency that demanded meetings that went on in the night. In all these situations, I pretended I had not understood what was going on, changed the subject and went my way. I kept my guts for confrontations that would really make a difference in my life, such as: a change of profession; the decision not to have children; the choice of being alone because I could not accept things many women do to have a boyfriend; the option to remarry, because I found someone worth the effort.

I know that, compared to what so many women face, my report may sound almost frivolous. I know many of them who are still hiding under the cloak of submission, not to irritate nor provoke third parties, and thus to survive. I recognize many others who affirm themselves in rebellion and do not care,  if they irritate or provoke - they live ferociously, period. I know there are women who are much stronger, more intense, more powerful and bolder than I am. This diversity is rich. And it is what makes me recognize myself in the tachycardia-samba, sung by Elza. It is what gives voice to all of us, women of the beginning and end of times.
(*) Elza Soares is a famous Brazilian singer.
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