O rosto marcante da cantora Elza
Soares preenche a tela do meu smartphone.
O close no seu olhar de esfinge prende a minha atenção – decifra-me ou
te devoro… Sua voz rascante marca os compassos de um tecno-samba de raíz, celebra
um carnaval quase apocaliptico. Seu agudo me deixa sem respiração, explode nos
versos que a definem como a mulher do fim do mundo. Aquela que quebra a cara,
mas canta até o final. Canta por mim, por você, por todas nós
Elza Soares - Imagem YouTube campanha Natura |
Não foram poucas.
Começou ainda na infância, quando as
chamadas brincadeiras masculinas de pular carniça e disputar torneios de bola
de gude, me pareceram mais divertidas do que algumas das que estavam reservadas
às meninas. Como minha mãe sempre dizia que ‘não ficava bem para uma mocinha de
bons modos se misturar com um bando de meninos’, convenci um primo a me ensinar
os dois jogos. Aprendi e os ensinei as minhas amigas, que, para desespero
materno, a eles aderiram com a mesma naturalidade com que, até então, só
brincavam de roda ou de passar anel. Ampliamos nosso cardápio de diversão e
fomos mais felizes por podermos contar com novas opções. Ali aprendi a importância da liberdade de
escolha.
E foi por tanto prezar essa
liberdade que, na adolescência, escolhi conscientemente não desafiar a
autoridade do meu pai. Conservador, muito apegado ao seu papel de ‘chefe da
família’, ele tinha princípios morais
bastante rigídos e deixava bem claro: não estava disposto a discuti-los comigo.
Portanto, não importava se a moda ditava a
minissaia como padrão, minhas bainhas eram milimetricamente medidas a
cinco dedos acima dos joelhos; não fazia a menor diferença se todas as minhas
amigas iam a festinhas no fim de semana e podiam chegar em casa depois da
meia-noite, obedecer ao horário de Cinderela era condição para eu ter vida
social – e, mesmo assim, não obtinha permissão para participar de todas as
festas – “moça de família não pode ficar muito vista; corre o risco de ficar
falada”…
Ah!
Não lembro quantas vezes fui chorar
no quarto, ao ouvir pérolas como essa, nem das tantas outras em que, querendo
me ajudar, minha mãe tentou sem sucesso argumentar com ele e acabou vindo
chorar comigo. Mas me recordo, sim, de ter entendido muito cedo que enfrentá-lo
seria como bater contra uma parede. Escolhi então contorná-la. Não bater de
frente, para alcançar meu objetivo de longo prazo: ir para o Rio de Janeiro,
estudar jornalismo e, a partir daí, construir minha independência. Durante
anos, tive que bancar a jovem cordata e ser resiliente às determinações daquele
que ditava com desenvoltura a palavra final, é verdade. Em contrapartida,
consegui que ele não emparedasse meu sonho. Aprendi ali a escolher as brigas em
que iria me engajar explicitamente.
Valeu a pena.
Assim como valeu a pena ter engolido
uma meia dúzia de verdades que gostaria de ter dito a alguns outros homens,
que, em papéis diferentes, passaram pela minha vida. O professor que subestimou
minha inteligência e aconselhou que eu buscasse uma profissão ‘mais feminina’;
o namorado que questionou a adequação de algumas amizades que eu cultivava; o
chefe que me preteriu em uma promoção, porque, na comparação de competências, o
colega que levou o cargo tinha ‘uma família para sustentar’; o cliente que se
insinuou num convite, digamos, pouco ortodoxo, depois de uma emergência de
trabalho que demandou reuniões que avançaram noite adentro. Em todas essas situações, me fiz de desentendida, mudei de assunto e
segui meu caminho. Guardei a saliva para confrontos que realmente fariam a
diferença na minha vida, como: a mudança de profissão; a decisão de não ter
filhos; a escolha por não pagar qualquer preço para não ficar sozinha; a opção
de voltar a casar, porque encontrei alguém que vale o esforço.
Sei que, se comparado ao que tantas
mulheres enfrentam, meu relato pode soar como bravata. Conheço muitas que ainda
se escondem sob o manto da submissão, para não irritar, não provocar, não
desacatar e, assim, poderem sobreviver. Reconheço outras tantas que se afirmam
na rebeldia e não estão nem aí, se irritam, provocam, desacatam – vivem ferozmente,
ponto. Sei que existem mulheres muito mais fortes, mais intensas, mais
poderosas e ousadas do que eu. É rica essa diversidade. E é ela que faz eu me reconhecer nesse samba-taquicardia, cantado por Elza. É
ela que dá voz a todas nós, mulheres do início e final dos tempos.
(*) Link para vídeo YouTube, campanha da Natura: https://www.youtube.com/watch?v=FYMGyMH_fUo
(*) Link para vídeo YouTube, campanha da Natura: https://www.youtube.com/watch?v=FYMGyMH_fUo
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Elza Soares’face (*)
fills the screen of my smartphone. The close on her sphinxlike gaze catches my
attention – ‘ decipher me or I will devour you’ ... Her rasping voice marks the
rhythm of a techno-samba, it celebrates an almost apocalyptic carnival. Its
sharpness makes me breathless, it explodes in the verses that define her as the
woman of the end of the world. The one that breaks the face, but keeps singing
until the end. She sings for me, for you, for all of us.
Once again, Natura breaks
paradigms in the advertising campaign that reinforces its brand positioning as
the Brazilian Perfumery House, by using Elza’s music and presence to approach
what is feminine from the opposite side of what has been always culturally
attributed to it. On TV and on the Web
for three weeks now, the ad touches on the essence of what we are: strong,
intense, powerful, and bold. It represents me and makes me think about those
qualities, which so many of us still do not know or cannot incorporate. It
makes me think about all the times I have not been able to exercise them myself,
or I had to use stratagems to do so.
Not a few.
It began as a child, when the
so-called jumped-up jokes and martial arts tournaments seemed to me to be more
fun than some of those reserved for girls. Since my mother always said, 'a
good-natured girl would never look good mingling with a bunch of boys,' I
persuaded a cousin to teach me both games. I learned them and taught my
friends, who, to their maternal despair, adopted them with the same neutrality
with which, until then, they only played with dolls. We expanded our fun menu
and were happier because we could count on new options. There I learned the
importance of freedom of choice.
For cherishing this freedom, as
a teenager I consciously chose not to challenge my father's authority.
Conservative, very attached to his role as 'head of the family', he had very
rigid moral principles and made it very clear: he was not willing to discuss
them with me. So, it did not matter if fashion dictated the miniskirt as a
pattern, my sheaths were mill metrically measured five fingers above my knees;
it did not make any difference if all my friends went to weekend parties and
could get home after midnight, observing Cinderella's schedule was a
prerequisite for me to have a social life - and yet I did not get permission to
participate in all parties - "we need to preserve your reputation"...
Ah!
I do not remember how many
times I cried in my room, after hearing things like that, or how many others my
mom tried to argue with him unsuccessfully and joined me in crying. But I do
remember having understood too soon that confronting him would be like hitting
a wall. I chose then to avoid it to reach my long-term goal: to move to Rio de
Janeiro, study journalism and, from there, build my independence. For years, I
had to play the young yes-girl role, it is true. On the other hand, I earned
his trust and he supported my professional dream. I learned there to choose
fights in which I would engage explicitly.
Worth it.
Just as it was worth having
swallowed a half dozen words that I wish I had told a few other men, who in
different roles, passed through my life. The teacher who underestimated my
intelligence and advised me to pursue a 'more feminine' profession; the
boyfriend who questioned the suitability of some friendships I cultivated; the
boss who precluded me from a promotion, because, in comparing skills, the
colleague who took the job had 'a family to support'; the client who insinuated
himself into an invitation, let's say, unorthodox, after a work emergency that
demanded meetings that went on in the night. In all these situations, I
pretended I had not understood what was going on, changed the subject and went
my way. I kept my guts for confrontations that would really make a difference
in my life, such as: a change of profession; the decision not to have children;
the choice of being alone because I could not accept things many women do to
have a boyfriend; the option to remarry, because I found someone worth the
effort.
I know that, compared to what
so many women face, my report may sound almost frivolous. I know many of them who
are still hiding under the cloak of submission, not to irritate nor provoke
third parties, and thus to survive. I recognize many others who affirm
themselves in rebellion and do not care, if they irritate or provoke - they live
ferociously, period. I know there are women who are much stronger, more intense,
more powerful and bolder than I am. This diversity is rich. And it is what
makes me recognize myself in the tachycardia-samba, sung by Elza. It is what
gives voice to all of us, women of the beginning and end of times.
(*) Elza Soares is a famous Brazilian singer.
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Bora com toda nossa fé em nós mesmas!!! 👏👏😘 Lindos texto e experiência! Beijos Jujuba
ResponderExcluirObrigada, Jujuba!
ExcluirÉ isso. Elza Soares cantando ao vivo a "Mulher do Fim do Mundo" arranca lágrimas, arrepia a pele, nos levanta da cadeira. Maravilhosa e forte. Como ela, como nós. Todas.
ResponderExcluirÉ isso aí. Como sempre e pra sempre, Elza!
ExcluirVera, adorei o texto. A escolha que você fez de pintar os cabelos de vermelho-sangue é para mim, o símbolo estético de tudo que você disse neste texto. Com carinho e admiração, Joice.
ResponderExcluirUm vermelho-statement, né? :--D Obrigada, Joy
ExcluirTexto marcante!
ResponderExcluirSomos realmente as mulheres do início e do fim dos tempos!
Obrigada por nos reverenciar!