Jerry Adriani, Tiberio
Gaspar, Belchior. Se as trajetórias dos três músicos recém falecidos aconteceram
em linhas paralelas, elas cruzaram a minha vida em algum momento – e ouso
dizer: da minha geração -- para se tornarem referência. Referência do fim de
uma infância embalada pelos hits do iê-iê-iê, que podiam até ter gosto
duvidoso, mas enchiam nossas jovens
tardes de domingo de alegria. Referência de uma adolescência arrebatada por
emoções grandiloquentes que se identificava com as canções que faziam cantar multidões
nos festivais. Referência de um início de vida adulta atordoado e aflito que se
reconhecia nos versos tortuosos e torturados daquele que se dizia apenas um
rapaz latinoamericano.
Quando as referências
são assim, fortes, a morte de quem está de alguma forma ligado a elas causa estranhamento.
E é assim, porque reconhecer a ausência dessas pessoas parece tornar tênue o
acesso ao pedaço da nossa história que elas marcaram. Parece nos deixar
perdidos no meio de um caminho conhecido, porque o atalho que constumávamos
trilhar para chegar ao destino foi apagado. E para que o caminho não
desapareça, é preciso redesenhar o mapa.
Redesenhar o mapa?
Sim, redesenhar o mapa.
Porque referências são como cartas geográficas, que nos levam aos lugares mais
recônditos daquilo que somos, indicando rotas e precipícios, espelhando mares
de medos, desejos, sonhos. São cartografias traçadas com o nanquim da emoção,
com a delicadeza dos gestos minimalistas, com a precisão que possibilita
enfrentar nevoeiros e tempestades. São pergaminhos resistentes ao mofo e às
traças. Para quem desconhece esse universo analógico, aqui vai a tradução: são GPSs
internos, que não dispõem de aplicativos para celular.
Referências residem na
memória e dela dependem para serem preservadas. Meu marido conta que, nos
últimos anos de vida, sua avó, Dona Celina, que morreu aos cem anos e meio, se
queixava de solidão, porque não contava mais com interlocutores da sua geração
para conversar. Quando ele, neto, respondia que estava ali e lhe perguntava se
isso não contava, ela contrargumentava:
“Claro que conta! Você é meu neto. Porém, não é alguém que compartilhe as mesmas referências e me lembre do que eu
já esqueci”.
Não sei a que idade
chegarei, nem se até lá contarei com algum contemporâneo para me lembrar do que tiver
esquecido. Ninguém sabe. Os que têm filhos e netos até podem contar a eles
aquilo que não querem esquecer, mas a julgar pelo relato da centenária Dona
Celina, não é suficiente. Outra alternativa é plantar árvores, atribuindo a
cada muda uma plaquinha com uma memória, ou escrever livros, perpetuando histórias. Como não primo pelo dedo verde, escolhi o caminho da palavra. E
enquanto não embarco na jornada de escrever um novo livro, vou deixando
lembretes registrados aqui.
Então, aí vai o de hoje::
Vera, escute as canções ‘Querida’, ‘Sá Marina’ e ‘A palo seco’ para não se
perder de você. e da sua história.
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Jerry Adriani, Tiberio Gaspar, Belchior
(*). If the trajectories of the three musicians who recently passed away happened
in parallel, they crossed my life at some point to become a reference.
Reference to the end of a childhood lulled by rock & roll hits, which might
even taste doubtful, but filled my young Sunday afternoons with joy. A
reference to a teenage girl caught up in grandiloquent emotions that resonated with songs that made crowds sing at festivals.
A reference to an astonished and distressed adult who recognized herself in the
lyrics of a guy who defined himself as a Latin American boy.
When the references are so strong, the
death of one who is somehow connected to them causes strangeness. And this is
so because recognizing the absence of this one seems to make tenuous the access
to the part of our history that he/she marked. It seems to leave us lost in the
middle of a known path, because the shortcut we used to reach destination has
been erased. And so that the path does not disappear, it is necessary to
redesign the map.
Redesign the map?
Yes, redesign the map. Because references
are like geographical charts, which take us to the most hidden places of what
we are, indicating routes and precipices, mirroring seas of fears, desires,
dreams. They are maps drawn with the ink of emotion, with the delicacy of
minimalist gestures, with the precision that makes it possible to face fog and
storms. They are parchments resistant to mold and moths. For those who do not
know this analogue universe, here's the translation: they are internal GPSs,
which do not have mobile applications.
References reside in memory and depend on
it to be preserved. My husband says that in the last years of her life, his
grandmother, Mrs. Celina, who died at the age of one and a half, complained of
loneliness because she no longer had interlocutors of her generation to talk.
When he, her grandson, answered that he was there for her and asked if that did
not count, she was brief:
"Of course you count. You count as
my grandkid, but not as someone who shares the same references and reminds me
of what I've already forgotten."
I do not know how long I will last, nor
will I have any contemporaries to remind me of what I've forgotten if I get
much older. Nobody knows. Those who have children and grandchildren can even
tell them what they do not want to forget, but judging from the centennial Mrs.
Celina’s testimony, it is not enough. Another alternative is to plant trees,
assigning each seedling a plate with a memory, or writing books, to make
histories always live. As I am not a gifted gardener, I have chosen the words
path. So, while I do not start writing a new book, I leave behind recorded
reminders here.
So, here it goes for today: Vera, listen to the songs 'Dear', 'Sá Marina'
and 'A palo seco' (**) to keep in touch with yourself and your history.
(*)
Jerry Adriani, Tiberio Gaspar and Belchior are Brazilian musicians and singers
who recently died.
(**)'Dear',
'Sá Marina' and 'A palo seco' are songs respectively composed by the tree
musicians above.
Referências do nosso tempo são mesmo relevantes para a vida que se prolonga. Que possamos seguir juntas, Verinha, nesta trajetória tão rica de trocas, amizade e carinho que é a vida entre amigos.
ResponderExcluirQue assim seja, Dibbbbbah!
ExcluirNao so as referencias musicais locais que vao se indo ... Para mim foi um choque saber das mortes do David Bowie, Prince, e no natal passado a do George Michael ... Aos poucos esses referenciais vao passando dessa para outra
ResponderExcluirMas ficam na nossa memória, Cyber e, enquanto lá persistem, fazem parte da nossa história.
ExcluirEstou tão sem referências que nem comentei. Hehe...
ResponderExcluir:--)))
ExcluirAcho importante ter referências de épocas que vivemos mesmo que nos tragam saudades mas podemos recordar momentos da vida em que tinhamos mais convivencias harmoniosas e simples como ir na portaria de uma rádio para solicitar músicas que hostavamos de ouvir e sonhar embaladas por elas, romantismo....Ho. querida relembre... os momentos felizes...que juntinho passamos, sobre a luz do luar.....
ResponderExcluirSimples e quase ingênuas, Maria Clara, :--)))
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