“Sabe aqueles dias em
que você tem vontade de pintar o cabelo de azul e se mudar para a Prússia?”,
ela me perguntou. E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela mesma
respondeu: ”…Pois é, estou em um desses dias azuis prussianos”. E antes que eu tentasse esclarecer, what a hell, é um dia-azul-prussiano,
ou, data venia, argumentasse: a
Prússia é um país que não existe mais – não com essa denominação, não com a
configuração geográfica que originou esse nome… Antes que eu buscasse saber,
afinal de contas, quem era eu e quem era ela, aquela que poderia ser qualquer
uma das duas, completou: “… E nesses dias assim, só me resta o espanto”.
Imagem Google |
“Ahan! Ahan!...”, reagi num murmúrio, sem entender porra nenhuma.
Fui, então, buscar no dicionário o significado de espanto. Desse ato ou efeito de espantar; medo excessivo; susto,
terror; admiração, assombro, pasmo; acontecimento imprevisto; alvoroço,
surpresa, susto; tanta coooooisa!...
Fiquei confusa. Ficamos eu e a minha natureza lusa, obtusa, ibérica, quase andaluza, sem
saber se aquele tal espanto era meu ou dela -- daquela que trazia a cabeleira em tons de anil e
desejava mudar-se para um território já inexistente.
Mas afinal de contas,
quem era eu, quem era ela?!
Eu não sabia. Ainda hoje
não sei bem... Só lembro que os diálogos emendavam arrebatados, mesmo que,
conscientemente, eu não entendesse a metade do que ela dizia. Ela que, ora eu
achava que era outra e, em certos momentos, tivesse certeza: era algum pedaço
meu, ao qual eu ainda não tinha acesso, falando por mim, se espantando em meu
nome. Fosse o que fosse, toda aquela intensidade me tirava do eixo, me
desbussolava.
Nós sempre nos
encontrávamos nos sonhos, quando ela falava uma língua que eu não entendia e a
comunicação acontecia por sinais -- uma
espécie de libras telúrico --, ou no espelho, quando a imagem que eu via
refletida se recusava a replicar meus gestos e ela (a imagem), se aproveitando do meu sobressalto silencioso,
me desafiava em bom português castiço:
“Se te dessem os jardins da Babilônia, tu os
manterias suspensos? Se tivesses acesso a Alexandria, protegerias a biblioteca
do fogo?”
“Huuuum! Haaammm!”, eu
engasgava sem resposta. Acabava buscando saídas para a charada em alguma
enciclopedia da vida (não, caríssimos
leitores millenials, na época não existia wikipedia; nem internet havia). E as
páginas de sabedoria sempre afirmavam:
não há provas que tais jardins realmente existiram -- apesar de os
definirem como uma das sete maravilhas do mundo antigo; há dúvidas se foi mesmo
um incêndio que apagou do mapa a biblioteca egípcia, até 2015, quando foi
reconstruída perto do seu local de origem.
Quebra-cabeças
históricos à parte, a verdade é que a convivência e os diálogos com essa figura
onírica tiveram impacto durante toda a minha vida. Na primeira infância, me
renderam a pecha de menina maluquinha, que, sem pudores ou disfarces, brincava
e falava sozinha na frente de todo mundo; na infância tardia, contribuíram para
que eu me ensimesmasse e me trancasse no
quarto para encenar as próprias fantasias; na pré-adolescência, me fizeram
passar por mentirosa, por contar a todos como fatos aquilo que só eu vivia
naquele universo paralelo. Até o dia em que, aos 14 anos, descrevi uma dessas
experiências numa redação escolar e me descobri admirada pelo que a professora
de Português definiu como “potencial talento literário”. Foi o passaporte para
tirar minha suposta amiga invisível da clandestinidade e lhe dar voz – uma voz
que todos entendessem e aceitassem; uma voz que passei a reconhecer e a assumir
como minha.
Ao longo dos anos, essa
voz ganhou potência para traduzir em palavras
muitas das minhas emoções. Algumas viraram livros, outras se
materializaram em textos fragmentados. Alguns livros foram publicados, outros,
muitos, foram engavetados. Os fragmentos venho resgatando e juntando aqui,
neste blog, como quem costura uma colcha de retalhos. Este patchwork que mistura e combina memórias, percepções, reflexõoes,
expectativas, saudades, esperanças… E que hoje, na surdina, alinhava o espanto.
“Sabe aqueles dias em
que você tem vontade de pintar o cabelo de azul e se mudar para a Prússia?...”
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"Do you know those days when you feel
like dyeing your hair blue and moving to Prussia?" She asked me. And
before I could say anything, she replied, "... Yeah, I'm on one of those
Prussian blue days." And before I tried to clarify, what a hell, it's a Prussian-blue
day, or, datavenia, argue: Prussia is
a country that no longer exists - not with that denomination, not with the
geographical configuration that originated that name ... Before I tried to
know, after all, who I was and who she was, the one who could be either one of
us, added: "... And in those days, all that remains is my amazement."
"Ahan! Ahan! ... ", I reacted
without understanding anything I went to search the dictionary for the meaning
of amazement. Of this act or effect of frightening; excessive fear; fright,
terror; admiration, astonishment; Unforeseen event; bustle, surprise, fright;
So many meanings that I got confused and could not determine if that was my or
her astonishment - of the one who wanted the hair dyed in tones of indigo and
wished to move to a territory no longer existent.
But after all, who was I, who was she?
I did not know. Even today I do not know well
... I only remember that the dialogues amended with rapture, even if,
consciously, I did not understand half of what she said. She who, at one time,
I thought was another person, and at certain moments I was sure: it was some
part of me, to which I still had no access, speaking for me, amazed on my
behalf. Whatever it was, all that intensity took off my axis.
We always met in our dreams, when she spoke a
language I did not understand and the communication took place through signs,
or in the mirror, when the image I saw reflected refused to replicate my
gestures and She (the image), taking advantage of my silent, challenged me in
good Portuguese:
"If you were given the gardens of
Babylon, would you keep them suspended? If you had access to Alexandria, would
you protect the library from the fire? "
"Huuuum! Haaammm! "I choked without
response. I ended up looking for responses in some encyclopedia (no, dear millennial
readers, at the time there was no Wikipedia, nor internet). And the pages of
wisdom always affirmed: there is no evidence that such gardens actually existed
- though they defined them as one of the seven wonders of the ancient world,
and there are questions whether it was a fire that erased the Egyptian library
from the map until 2015, when it was rebuilt near its place of origin.
.
Historical puzzles aside; the truth is that
the coexistence and the dialogues with this dream figure have had an impact
throughout my life. In my early childhood, they branded me as a crazy girl,
who, without disguise, played and spoke alone in front of everyone; In my later
childhood, they made me so self-absorbed that I locked myself in the bedroom to
stage my own fantasies; In my pre-adolescence, they made me be seen as a liar,
since I told everyone as facts what only I was living in that parallel
universe. Until the day when, at the age of 14, I described one of these
experiences in a school essay and found myself admired by what the Portuguese
teacher defined as "a potential literary talent." That was the
passport to get my supposed invisible friend out of hiding and give her voice -
a voice that everyone understood and accepted; a voice that I came to recognize
and to assume as my own.
Over the years, this voice has gained power to
translate into words many of my emotions. Some of them became books, others
materialized in fragmented texts. Some books have been published, others, many,
have been shelved. The fragmented texts became the pieces I have been rescuing
and getting together here, in this blog. This patchwork that mixes and combines
memories, perceptions, reflections, expectations, hopes ... And that today got
a piece of amazement.
"Do you know those days when you feel
like dyeing your hair blue and moving to Prussia? ..."