Na tarde fria de São Paulo, um nariz
de palhaço aparece, de repente, colado ao vidro lateral do carro, enquanto
espero a abertura do sinal – semáforo, farol, como dizem aqui. Em tempos de
violência a qualquer hora, por pouco ou quase nada, em todo lugar, me assusto
com a esfera rubra que serve de acabamento para a maquiagem burlesca do homem
usando peruca vermelha e vestindo jaleco. Ele me sorri e acena com um cartazete
dizendo: ‘Somos da ONG Doutores da Alegria. Você pode nos ajudar com pouco”(*). Olho em volta e vejo outros jalecos brancos,
com perucas laranja, azuis, verdes, acenando para os automóveis vizinhos. Tomo
coragem e baixo o vidro. Ganho um sorriso e a proposta de colaborar, através da
compra de um nariz de palhaço por um real. Saco uma nota de dez e peço dez
narizes. Acredito que, assim, me livrarei da culpa. Da culpa pela minha primeira
reação diante daquele polichinelo do bem – mais que desconfiada, amedrondada. Da
culpa por não estar eu ali, encarnando um palhaço, para vender alegria por
alguma causa nobre.
Tolinha!
Há mais o que aprender do que
expurgar, concluo, ao deparar com os dez narizes vermelhos amontoados no meu
colo. Encaixo um deles sobre o meu próprio e, às gargalhadas que, subitamente,
se sobrepõem a minha fala (coisa rara!), me despeço do bufão de cabeleira escarlate
que me vendeu o apetrecho. E gargalhando
a bandeiras despregadas -- como diria Fernando Pessoa em um dos seus escritos (**) -- percorro os três quarteirões
que me separam de casa, no limite da velocidade permitida.
Hahahahaha!...
Há quanto tempo eu não ria assim e
por tão pouco (?), me pergunto, enquanto estaciono o carro na garagem. Como tão
pouco pode me fazer vibrar tanto (?), insisto, enquanto tento decodificar essa
alegria que rufa no peito, como se ali se inquietassem tambores.
Rataplã! Bum-bum-patigum-bum-prugurundum!,…
Qual seria a onomatopéia correta?
Qual seria a tradução precisa para tanta alegria? Para essa emoção que, se a
alguma conta-corrente se atrelasse, o extrato nada além registraria: dez reais
referentes à compra de dez narizes de palhaço…
Dez narizes e dezenas de gargalhadas.
Narizes que acoplados ao meu rosto o tornam bisonho, quase infantil. Risadas resgatadas
sei lá onde e que não têm preço, só o apreço de quem ri, acha graça, zomba de
si mesmo. E assim age, porque reconhece que nada é tão sério ou tão importante,
para valer lágrimas ou noites de insônia. Nada é tão grande, para não escapar dos
territórios da melancolia. E se tudo vale a pena quando a alma não é pequena --
reconhecendo novamente a sabedoria de Fernando Pessoa – um simples adereço
circense pode, sim, provocar insights,
epifanias.
Citações, delírios e pesadelos à
parte, sobram os delitos. Esses pecadilhos que remetem às nossas limitações,
vulnerabilidades. Qualidades disfarçadas, que se tornam explícitas toda vez que
pensamos ser maiores do que nossas próprias pernas; sempre que negamos nosso real
tamanho. É com elas que me confronto, agora, quando deparo com minha imagem,
refletida no retrovisor do carro, usando um nariz de palhaço. É nelas que
reconheço minha alma mambembe, minha inaptidão para o malabaris. É a partir delas que enceno minha pantomima
desvairada -- aquela que não recebe aplausos, se esgueira pelas coxias. E para
quem, como eu, mesmo quando criança, nunca foi fã de circo, resta esse
aprendizado. O aprendizado de se
reconhecer palhaço para rir de si mesmo.
(*) Doutores da Alegria -- organização da
sociedade civil sem fins lucrativos que utiliza a arte do palhaço para intervir
junto a crianças, adolescentes e outros públicos em situação de vulnerabilidade e risco social, em hospitais públicos
e ambientes adversos.
(**) Fernando Pessoa – Escritor e poeta português (1888 -1935)
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On a cold afternoon in Sao Paulo, a clown nose
suddenly appears glued to the side window of the car, while I wait for the
green light. In times of violence everywhere, at any time, for little or almost
nothing, I feel scared of the red sphere that composes the man's burlesque
makeup. He is also wearing a red wig and a lab coat. He smiles at me and waves
a note saying, 'we are from the Doctors of Joy NGO. You can help us with little
"(*). I look around and see other white coats, with orange, blue, green
wigs waving at the neighboring cars. I take courage and open the window. He smiles
and says I can help his cause, by buying a clown nose for less than a dollar. I
tell him I want to buy ten noses. I believe that doing so I will be free from guilt.
The guilt for feeling suspicious of him at first sight. The guilt for not being
there as a clown to sell joy for some noble cause.
How fool I am!
There is more to learn than to purge, I conclude, as
I stumble across the ten red noses on my lap and fit one of them on my own nose.
I say goodbye to the clown and from nothing I start laughing. And laughing I
drive through the three blocks that separate me from home.
Hahahahaha! ...
How long haven’t I laughed like this, I wonder, as I
park the car in the garage. How such a little thing can make me vibrate that
much, I insist, as I try to decode that joy that rattles like drums in my chest.
Rataplan! Bum-bum-patigum-bum-prugurundum!, ...
What would be the right onomatopoeia? How to
translate this joy? How to explain such an emotion triggered by the purchase of
ten clown noses?
Ten noses and dozens of laughs. A nose that attached
to my face makes it look childish. Laughs that make me realize that nothing is
so serious or so important to be worth tears or awaken nights. Nothing is so
great that cannot escape from the territories of melancholy. And if everything
is worth when the soul is not small - as Fernando Pessoa (**) would say - a
simple circus props can, yes, provoke insights, epiphanies.
Quotes, delusions and nightmares aside, the small
crimes remain. These small sins related to our limitations, vulnerabilities. Those
disguised qualities, which become explicit every time we think we are bigger
than our own legs; whenever we deny our real size. It is with them that I am
confronted, now, when I watch my image, reflected in the car rearview mirror,
wearing a clown nose. It is in them that I recognize my fragile soul, my
inability to juggle. It is from them that I play my disheveled pantomime - the
one that does not receive applause. And for those who, like me, even as a
child, have never been a circus fan, there is still this learning: laugh at yourself,
as a clown would do.
(*) Doctors of joy - non-profit civil society organization that uses the
art of the clown to intervene with children, adolescents and other public in
situations of vulnerability and social risk, in public hospitals and adverse
environments.
(**) Fernando Pessoa - Portuguese writer and poet (1888 -1935)
Vera, qd vier a Petrópolis e se ainda tiver os narizes, traga um pra mim. Tô precisando rir de mim mesma... Beijocas ;)
ResponderExcluirPode deixar.
ExcluirRir sempre ilumina a alma ... :) ...
ResponderExcluirSempre!
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