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sábado, 1 de julho de 2017

Fundo de gaveta / From a drawer bottom

Que mistérios escondem os véus de seda de Sherazade?...

Encontro a quase charada, que remete a histórias de mil e uma noites, manuscrita em um bloquinho perdido no fundo da gaveta.  É parte do espólio de uma daquelas faxinas, em arquivos acumulados ao longo do tempo, que fazem a gente trombar com pedaços esquecidos da própria vida. Uma foto impressa em papel, com as cores já desbotadas; uma caixinha de fósforos vazia, com a logomarca de um bar que sumiu do mapa; um balangandã, cuja pulseira arrebentou e se perdeu numa estação de metrô; um frasco de murano, cujo perfume evaporou sem nunca ser usado; um verso que nunca virou poema. Ficou, assim, solto, solitário, só na pretensão.

A pretensão de causar impacto, quando servia de introdução à mensagem-saudação da minha secretária eletrônica – aparelho, hoje jurássico, mas que no século passado -- ali pelos anos 90 -- era sinônimo de modernidade e incentivo a esses arroubos de criatividade. A pretensão de quebrar paradigmas, quando o usei como abertura de um discurso em evento corporativo, que pretendia refletir e discutir a excelência na comunicação. A pretensão de ganhar corpo e contar uma história. Uma história com começo, meio e fim. Uma narrativa que rompesse com o vício dos começos recorrentes, dos ciclos que sempre terminam em velhos recomeços e que, assim, andando em círculos, não levam a lugar algum. Viram destinos no jogo de espelhos de um caleidoscópio…

Quanta ilusão! Quanta pretensão!

Mas como de pretensão e água benta o mundo está cheio, impossível não perguntar: quantas pessoas conheci enredadas nessa teia?  Quantas vezes eu mesmo nela me embrenhei, atraída pelas sombras da sua geometria?  Quantos labirintos precisamos percorrer para libertar nossos minotauros?  Quantas epopeias me impus enfrentar por desfazer do que é fácil, simples, trivial?

Muitas. Tantas, que até perdi a conta. E delas só me dei mesmo conta, quando à idade somou-se a urgência, a quase emergência de não negligenciar as oportunidades que estão aqui, agora, já. Porque a matemática é simples: o tempo que tenho pela frente é menor do que todo o tempo que já vivi. Então, há que esvaziar gavetas, a fim de abrir espaço para o que está por vir; há que afastar cortinas, para que o sol adentre, ilumine e aqueça. E nessa faxina-prática-de-arqueologia contundente, há que remexer nos fragmentos sem mágoas ou ressentimentos. Há que desapegar-se deles sem arrependimentos.  Porque uma foto desbotada não substitui o momento ali capturado;  uma caixa sem fósforos não tem serventia; o berloque esquecido não trará a pulseira perdida; e o perfume evaporado não retornará ao frasco. Mas, sobretudo, porque os mistérios que os véus de Sherazade escondem não causam mais  efeito -- só há tempo para viver às claras.
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What misteries Sherazade’s veils hide?...

I find the charade, which refers to a thousand and one nights tales, handwritten in a little booklet lost in a drawer. It is part of the inventory of one of those house cleaning that make us bump with forgotten pieces of our lives. A printed photo with the colors already faded; An empty matchbox with the logo of a bar that disappeared from the map; A chain of a bracelet that was lost in a subway station; A murano perfume glass, whose fragrance has evaporated without ever being used; A verse that never became a poem. It has remained loose, lonely, only in pretension.

The pretension of making an impact, when it served as an introduction to the message-greeting of my answering machine – a Jurassic appliance nowadays, but that in the last century - there by the 90s - was synonymous of modernity and encouragement to those creative impulses. The pretension of breaking paradigms, when I used it as part of a speech in a corporate event that intended to discuss excellence in communication. The pretension to become more than a verse to tell a story. A story with beginning, middle and end. A narrative that broke with the addiction to recurrent beginnings, to cycles that always end in old beginnings, and thus, going in circles, lead to nowhere – the destiny embedded in the mirrors of a kaleidoscope

What an illusion! What a pretension!

But as the world is full of pretension and holy water, it is impossible not to ask: how many people have I met entangled in this web? How many times have I found myself in it, attracted by the shadows of its geometry? How many labyrinths do we have to wander to free our Minotaur? How many epics did I have to face just because I did not know how to deal with what is easy, simple, trivial?


Many. So many that I have lost count. And I only noticed them, when the age brought the urgency -- the almost emergency of not neglecting the opportunities that are here, now, already. Because the math is simple: the time I have ahead is shorter than all the time I've lived. So it is time to empty the drawers to make room for what is to come; it is time to move the curtains away to allow the sun in. And in this cleansing-practice-of hard-hitting archeology, it is necessary to sift through fragments without hurt or resentment to let them go without regrets. Because a faded photo does not replace the captured moment; a box without matches is useless; the forgotten trinket will not bring the lost bracelet; and the evaporated perfume will not return to the glass. But above all, because the misteries that Sherazade’s veils hide do not cause an impact anymore. It is time to live without secrets.

8 comentários:

  1. Desapegar é bom. Dá pra viver o que virá e não ficar na nostalgia.

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    1. Mais do que focar no que está por vir, é fundamental aproveitar o hoje, o agora, já. Vai que a vida se esgote e não haja amanhã?

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  2. Com amor, carinho e memória. Saudosismo demais pode jogar contra!

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  3. O desapego eh liberador, e nos proporciona uma leveza interior que nos ajuda a seguir em frente na nossa jornada ...

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    1. Sem dúvida, Cyber, mas muitas vezes é preciso condicionar-se, para exercê-lo. Para combater a tendência a apegar-se e a acumular coisas, sentimentos e/ou ressentimentos.

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  4. Verinha, parece que você escreveu este artigo para mim. É esta a fase que estou vivenciando. Quanto apego! Tenho refletido bastante sobre guardar somente o que me traz emoções felizes. Mas tudo se realiza mediante processos. O importante é termos a consciência do começo do caminho. beijos !

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    1. Que bom, Denny, que o post "falou com você". Pelo o que tenho ouvido das pessoas, parece que essa reflexão é bem própria dos 50, 60+. Até porque se guardarmos tudo o que acumulamos ao longo dos anos, não há espaço físico e/ou memória que cheguem. Há que selecionar e esse exercício muitas vezes torna-se um desafio.

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