Quem sou eu

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Apenas Humanos / Only Human Beings

Nasci 48 anos depois que  mulheres dos Estados Unidos e da Europa, no início do século passado,  começaram a se organizar e a lutar por melhores condições de vida, pelo acesso ao mercado de trabalho e pelo direito ao voto.  Também não havia nascido, quando elas decidiram criar uma data para lembrar ao mundo que o feminino era e é, sim, fato, mas também tinha e tem direitos.  Não lembro exatamente quando comecei a refletir sobre essas questões – talvez por volta dos 10 anos, quando ouvi falar das feministas queimando sutiãns em praça pública – mas me recordo, com clareza, de ter questionado o valor da iniciativa da Organzação das Nações Unidas de instituir, em 1977, o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. Para mim, naquele momento, tudo já havia sido conquistado. 

Eu tinha 20 anos, havia três que deixara a casa dos meus pais para cursar jornalismo em outra cidade e fazia dezoito meses que ingressara no mercado de trabalho. Com meu salário de estagiária, mais os ganhos com trabalhos free-lance, conquistara minha independência econômica:  pagava todas as minhas contas e usufruia da sensação única de caminhar com as minhas próprias pernas; de ser dona da minha vida. Me sentia realmente poderosa e, entre o deslumbramento e a miopia dessa egotrip não cogitava que meus colegas homens ganhassem trinta por cento mais que eu pelo mesmo trabalho e acreditava, piamente, que todas as mulheres da minha geração tivessem acesso a oportunidades equivalentes às minhas. 

Santa alienação!  

O primeiro choque de realidade aconteceu no dia em que cheguei mais cedo e deparei com a diarista -- uma moça da minha idade -- na frente do espelho do quarto, experimentando o vestido que eu acabara de comprar para usar no meu aniversário de 21 anos. Desorientada pelo flagrante, ela perdeu a voz ao tentar se explicar. Diante daquele silêncio constrangido, eu me dei conta da diferença entre poder realizar sonhos e só ter a possibilidade de tê-los frustrados. Não deixei que ela tirasse o vestido – a verdade  é que o modelo caíra melhor nela do que em mim – não permiti que se humilhasse em pedidos desculpas, não a demiti. Ela trabalhou na minha casa por mais de quinze anos. Fomos aliadas em várias batalhas travadas ao longo do tempo em que convivemos. Tive a felicidade  de vê-la graduar-se em técnica de enfermagem e conseguir emprego na profissão.

O segundo wake up call (chamada para despertar) ocorreu, meses depois, quando, solidariamente, acompanhei uma amiga a uma clínica para fazer um aborto. Fora o custo emocional de compartilhar uma decisão  que, para ela,  era mais que dolorosa, experimentei o pânico  pela possibilidade de sermos presas em flagrante – ela, por estar exercendo um direito que deveria poder ter sobre seu próprio corpo e que aqui é considerado crime; eu, por ser cúmplice. Sobrevivemos, eu e ela, incólumes perante a lei, porém, marcadas naquilo que fica dolorido na alma. Minha amiga hoje tem quatro filhos crescidos e bem criados, mas até hoje se lembra, com uma ponta de sobressalto, do  que vivemos, naquela clínica, numa tarde de outono. 

O terceiro ‘cai na real, Vera!’ se deu, anos mais tarde, quando, durante o ciclo de promoções na firma em que eu trabalhava, vi uma colega e amiga que, todos reconheciam: deveria ser nomeada para  uma gerência, ser preterida por causa de um homem que, mesmo sem ter toda a sua competência, foi colocado no posto, porque era ‘chefe de família’.  A justificativa ela ouviu de quem tomou a decisão, como algo muito natural e passível de ser aceito, até que ela lhe informou que era/é, ela mesmo, mãe de família --  cuidava/cuida sozinha de dois filhos. Minha amiga hoje exerce cargo executivo em uma grande empresa e dá gargalhadas toda vez que, brincando, lhe pergunto se já enviou o cartão de visitas para quem um dia não reconheceu o seu talento. 

Eu poderia continuar enumerando aqui todas as situações que desmentiram  minhas certezas dos 20 anos. Todas as circunstâncias que me levaram a reconhecer que a independência e a autonomia que pude conquistar, ainda tão jovem, não eram (e ainda não são) garantidas a todas as mulheres da minha e de outras gerações. Poderia recapitular todos os fatos que me fizeram concluir que, mesmo o caminho que trilhei como meu foi pavimentado por aquelas mulheres que ocuparam praças e avenidas, quando eu nem havia nascido. Poderia, mas seria um post interminável, tantos foram os acontecimentos que esfregaram e ainda esfregam a crueza do mundo real na minha cara. 

E é por conta dessa realidade que, antecipadamente, celebro aqui o dia internacional da mulher, cuja importância um dia tanto questionei. Eu o celebro não como ocasião para festejos – pretexto para distribuir rosas vermelhas, mas como uma data que nos convida a refletir sobre o que somos hoje, de onde viemos e para onde queremos ir; como um momento para recalibrar forças e estreitar laços, sem perder a clareza e tampouco a doçura. Uma data para inspirar homens e mulheres  de todas as nacionalidades, raças, idades, credos e opções de gênero, a buscarem o entendimento, a harmonia, a cooperação. Uma data para, simplesmente, nos fazer acreditar que há de chegar o dia em que não precisaremos marcar no calendário dia que nos lembre que somos apenas humanos. 

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I was born 48 years after women from the United States and Europe at the beginning of the last century began to organize and fight for better living conditions, access to the labor market and the right to vote. Nor was I born when they decided to create a date to remind the world that the feminine was and is, a fact, but also had and has rights. I do not remember exactly when I began to reflect on these issues - perhaps around the age of 10, when I heard about feminists burning brassieres in a public square - but I clearly remember questioning the value of the United Nations Organization's initiative to institute , In 1977, the 8 of March like International Women's Day. For me, at that moment, everything had already been won.

I was twenty years old, there were three I had left my parents' house to study journalism in another city and had been in the labor market for eighteen months. With my trainee salary, plus the gains from free-lance jobs, I had gained my economic independence: I paid all my bills and enjoyed the unique sensation of walking with my own legs; Of being the owner of my life. I felt really strong and, amidst the dazzle and myopia of this egotrip, I did not think that my fellow men would earn thirty percent more than I did for the same job, and firmly believed that all the women of my generation had access to opportunities equivalent to mine. .

Holy alienation!

The first shock of reality happened the day I arrived earlier and came across the cleaning lady - a girl my own age - in front of the bedroom mirror, trying on the dress I had just bought to use on my 21st birthday . Disoriented by the flagrant, she lost her voice as she tried to explain herself. In the face of this embarrassed silence, I realized the difference between being able to fulfill dreams and only being able to frustrate them. I did not let her take off the dress, I did not allow her to humiliate herself in apologies, I did not dismiss her. She has worked in my house for over fifteen years. We were allied in several battles fought over the time we live. I was fortunate to see her graduate in nursing technique and get a job in the profession.

The second wake-up call came months later, when, in solidarity, I accompanied a friend to a clinic to have an abortion. Aside from the emotional cost of sharing a decision that was more than painful for her, I experienced panic over the possibility of being caught in the act that is considered a crime in Brazil. We have survived, me and her, unblemished before the law, but marked in what is painful in the soul. My friend today has four grown and well-bred children, but to this day she remembers, with a startle, what we live in that clinic on an autumn afternoon.

The third 'wake up to reality, Vera!' came years later when, during the promotions cycle at the firm where I worked, I saw a colleague and friend whom everyone recognized: should be appointed to a management, be deferred because of a man who, even without having her skills, was placed in the post because he was 'head of the family'. The justification she heard from the one who made the decision, as something very natural and amenable to being accepted, until she informed him that she was herself the mother of a family and cared for two children alone. My friend today holds an executive position in a big company and laughs every time, jokingly, I ask her if she already sent her business card to those who one day did not recognize her talent.

I could continue enumerating here all the situations that denied my 20 years old certainties. All the circumstances that led me to recognize that the independence and autonomy that I was able to conquer, still so young, were not (and still are not) guaranteed to all the women of my and of other generations. I could recapitulate all the facts that led me to conclude that even the path I walked like mine was paved by those women who occupied squares and avenues when I was not even born. I could, but it would be an endless post, so many were the events that rubbed and still rub the crudity of the real world in my face.

And it is because of this reality that, in advance, I celebrate here the International Women's Day, whose importance I once questioned so much. I celebrate it not as an occasion for festivities - a pretext to distribute red roses, but as a date that invites us to reflect on what we are today, where we came from and where we want to go; as a moment to recalibrate strength and strengthen ties, without losing clarity or sweetness. A date to inspire men and women of all nationalities, races, ages, beliefs, religions and gender choices, to seek understanding, harmony, cooperation. A date to simply make us believe that the day will come when we will not need to mark the calendar on the day that reminds us that we are only human.

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