Ontem comprei uma cadeira de
rodas para o meu pai. Tive que fazer isso, ao constatar que sua dificuldade de
locomoção está se tornando crescente, que a precariedade do seu equilíbrio tem
desafiado, de forma cada vez mais constante, a lei da gravidade e que o apoio
dado pela bengala, que ele passou a usar há um ano e meio, já não está sendo suficiente
para ancorar seus 77 quilos.
Tomei essa decisão, mesmo
sabendo que, no primeiro momento, ele se recusará contundentemente a sentar na
cadeira – sequer olhará para ela; e que, provavelmente, a definirá da mesma
forma como se referiu ao andador que lhe dei há seis meses, quando o vi,
titubeante, escorando o corpo nas paredes de casa:
“isto é um trambolho! Não tem
qualquer utilidade!”
Eu e meus 'passarinhos' / Me and my 'little birds'- mom & dad |
Uma vez mais, eis-me aqui,
antecipando necessidades, através de decisões que não são fáceis de tomar, nem
de ser aceitas. Decisões que, à revelia da minha vontade, vem pontuando a minha
vida nos últimos três anos e que implicam uma inversão de papéis. Eu, filha --
filha única que decidiu não ter filhos – assumindo, paulatinamente,
responsabilidades de pai e mãe. Ele, meu pai, junto com a minha mãe,
reconhecendo as limitações impostas pela nona década de vida, mesmo quando se
tem boa saúde (caso deles), mas resistindo, bravamente às dificuldades e à
necessidade de se deixarem cuidar. Teimosos como duas crianças.
Uma resistência que se traduz
em dizer não a toda e qualquer potencial mudança na rotina de suas vidas, mesmo
quando a novidade tem por objetivo preservar o que eles mais presam: sua
independência e privacidade. Uma obstinação em manter tudo da forma como sempre
foi, como se assim pudessem frear a
passagem do tempo, que me exige determinação, paciência e tenacidade para tomar
as atitudes necessárias a mantê-los independentes na sua ‘vidinha de
passarinhos’, porém, apoiados e seguros.
Saber quando interferir,
apesar das suas vontades contrárias, tem sido um aprendizado desafiador e
constante. O parâmetro de prover segurança tem sido o fiel da minha balança. Foi o
argumento para convencer minha mãe, um ano atrás, de que era necessário
aposentá-la da cozinha, contratando alguém que se encarregasse do preparo da
comida, depois que ela (mamãe) quase
explodiu o fogão, ao manter o gás aberto e demorar a acender o forno.
Foi o motivo que levou os
dois a perceberem que, sim, precisavam de uma profissional para acompanhá-los
durante a noite, depois que ambos quase se deixaram levar por um trote
telefônico exigindo resgate em troca da filha sequestrada (no caso, eu).
Foi a razão para fazer meu
pai aceitar minha ajuda para controlar sua conta bancária e as despesas da casa,
porque, na sua idade, não cabe mais fazer contas de cabeça e é arriscado
continuar indo ao banco sozinho, principalmente, depois que ele quase caiu, ao
tropeçar no degrau da entrada da agência. Como ele mesmo costuma dizer,
referindo-se à própria idade: “São noventa e oito e meio!”
Enfim, esse tem sido um exercício e tanto.
Um exercício de discernimento
e persuação, para quem, como eu, que nunca primou pela paciência, se dar conta
do limite do outro, respeitá-lo e aprender a esperar até o momento em que esse
outro se dê conta da própria limitação e ceda. Um exercício de humildade e
afeto, para quem, como eu, que sempre vestiu a arrogância de simpatia, entenda que
não vale a pena usar disfarces para nocautear contrários, porque o amor não
disputa, abraça. Um exercício de memória, para me lembrar sempre que, embora eu dedique parte do meu tempo e da
minha energia a armar redes de proteção para trapezistas que já não avaliam o
risco do salto, eles -- meus pais-trapezistas
-- continuam sendo e sempre serão os
donos do próprio trapézio. Mesmo que não possam mais impulsioná-lo, ainda que
não consigam mais projetar o corpo em arco e nem se lembrem do que é alçar vôo
em piruetas.
Reconhecer e respeitar essas
fronteiras, é fundamental para assegurar
a mim e a eles – não importa quem sejam os pais, quem seja a filha – uma boa
travessia. Uma travessia sem tempestades, sem calmarias.
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Yesterday, I bought a wheelchair
to my father. I had to do that, since I
have realized he is moving with more and more difficulty and the cane he
started using eighteen months ago seems not to be sufficient to support his 60
pounds. I took this decision; even
knowing his first reaction will be denying the need of the chair. He will
probably define it the same way he did when, six months ago, I bought him a
walker:
“This is trash! I do not need
it!”
So, here am I, once again
anticipating needs through decisions that are not easy to be made, neither to
be accepted. Decisions that, regardless of my wishes, have been part of my life
in the last three years and have been demanding a reversion of roles. Me, the
daughter – the only daughter, who decided not to have kids – taking parental
responsibilities. Him, my dad, together with my mom, recognizing the aging
limitations, even when you have good health (their case), but bravely resisting
to be taken care of. Just like stubborn children would do.
They practice this resistance
saying NO to any tiny potential change on their routine, even when it comes to
preserve what they mostly value: their independence and privacy. An obsession
to keep things as they have always been – as if doing that they would be able
to control time and aging – that demands determination, patience and resilience
whenever I need to make decisions to keep their lives supported and safe.
Observing the fine line between taking care of them and invading their intimacy
has been the big challenge.
I have been finding the
balance in the concept of keeping them safe. That was the argument to convince
my mom it was time to hire a cooker, after she almost burnt the stove a year
ago. That was the approach that made them both realize they needed night homecare
, after the two of them got a false midnight phone call saying I had been
kidnapped and they had to pay a ransom to get me back home. That was the reason
that pushed my dad to accept he needed my help to manage domestic expenses and
his bank account.
Wow! That has been a real
work out!
An exercise to be aware and
respect other’s limitations. An exercise to embrace and love other’s
perspective. An exercise to remind me that, although I dedicate a big chunk of
my time and energy to build safe nets to trapeziuses who are not aware of the
jumping risks anymore, they – my parents-trapeziuses – still owning the trapezium.
This is a key success factor
to guarantee a good jump for me and them – no matter who are parents, whom are
kids.