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sábado, 17 de setembro de 2016

Velho ou Vintage, Eis a Questão / Old Trash or Antiques, That's the Question

“Se você gosta é vintage, se não gosta é velho?”.  A pergunta que Clara, personagem de Sonia Braga em Aquarius, faz à filha, em uma das cenas do filme, toca com ironia e sutileza as contradições na nossa forma de lidar com a passagem do tempo. Aponta nossa dificuldade em perceber que aquilo que, tantas vezes, descartamos como velho, guarda memórias que talvez não devessem ser deletadas . Memórias que nos ajudam  a lembrar quem somos, de onde viemos,  pelo que passamos, e que envelhecer é um processo que não começa apenas quando cruzamos a linha dos ‘enta’. É o próprio curso da vida.

Sonia Braga, como Clara, em cena de Aquarius
Independente do seu viés politico-ideológico, o que mais me encanta em Aquarius é a sua narrativa sensível do cotidiano de uma mulher sexagenária, que vive o dia de hoje,  sem renegar suas lembranças. Pelo cotrário, ela as cultiva como flores raras em cada música da sua coleção de vinil, em cada foto guardada em álbuns não digitalizados, em cada ruga traçada pelo tempo no próprio rosto.  Elas, as lembranças, são os alicerces da sua identidade e, sendo assim, a alimentam com fibra e coragem para enfrentar o presente, brigando pelo que acredita.

Não importa se partilho ou não das convicções de Clara. É sua atitude em seguir regando canteiros, quando os jardins andam escassos, que provoca reflexao.  Essa sua certeza que um dia florescerão. E fico me perguntando em que curva da história  essas sementes são plantadas dentro da gente.  Inevitavelmente, refaço um pouco da minha própria trajetória.

Lembro de mim,  menina, jogando amarelinha na pracinha em frente ao prédio onde morava em Petrópolis (*) e flanando pelas calçadas da cidade sobre um par de patins. Lembro das férias na casa da tia-madrinha, Dudu, em Jacarepaguá(**), e do quintal, sombreado por uma enorme amendoeira, que era transformado pelo meu tio-padrinho, Leo, em parque temático de acordo com a ocasião. Se era Páscoa, virava o jardim que escondia os ovos deixados na véspera pelo coelhinho e que, na manhã de domingo, todas as crianças da rua eram convidadas a caçar. Se era Natal, virava salão de gala, com a mesa  do almoço arrumada em grande estilo, para acomodar toda a familia em volta do bacalhau, do vinho verde gelado e de todas as sobras da ceia da noite anterior. Se era São João, virava o Arraiá do Seu Leo, com direito a canjica, quentão, fogueira, quadrilha e casamento na roça -- com ele, meu tio, vestido de padre para celebrar a união. Pra ele, tudo tinha que ser à caráter, ou não tinha graça. E a gente se esbaldava! 

Anarrié!...

Lembro  da casa dos meus tios-avós, no Leblon (***), quando as ruas do bairro ainda eram calçadas com paralelepípedos e, no Reveillón, andávamos as duas quadras até a praia, para assistir os grupos do candomblé homenageando Iemanjá.  Na volta, havia a ceia para esperar a meia-noite com suas simpatias para garantir sorte, saúde e dinheiro no ano que começaria. Lembro da noite em que minha prima Horaida, em vez de entrar na sala comendo oito uvas e jogando oito moedas por trás do ombro no jardim, arremessou as uvas e quase engoliu as moedas na maior convicção. Impossível não rir, ainda hoje, da sua cara de susto e frustração: teria que esperar um ano inteiro para se arriscar novamente na fezinha.

Sei que tudo isso remete à infância e que pode soar como saudosismo de quem está chegando perto da sexta década. Portanto,  para muitos não é vintage, é velho.  Para mim, é uma viagem no tempo, sim. Mas uma viagem que resgata pedaços dessa mulher que, hoje, todas as manhãs, me encara do reflexo do espelho. Essa que se desfez de todos os discos de vinil, que digitalizou todas as fotografias dos álbuns de família, que, às vezes, ainda estranha o desenho das rugas na própria face, mas que, depois de ver o rosto de Sonia Braga em Aquarius e achá-lo lindo ampliado na tela, confirmou sua convicção: nunca vai aplicar botox! 

(*) Petrópolis, cidade serrana no Estado do Rio onde nasci, situada a 60 km da cidade do Rio de Janeiro.
(**) Jacarepaguá, bairro da Zona Oeste, na cidade do Rio de Janeiro.

(***) Leblon, bairro da Zona Sul, na cidade do Rio de Janeiro.

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“If you like it, it is an antique, if you do not, it is an old trash?”  The question asked by Clara, Sonia Braga’s part in Aquarius, to her daughter in one of the movie scenes touches people’s contradictions in the way they deal with time. It points out the difficulty to recognize that things we, many times, get rid of assuming they are old, actually hold a lot of memories that should not be discarded. And they should not, because they remind us of whom we are, where we belong to and that getting old is not a process only started when we cross the forties. It is life in itself.

Regardless of its ideological approach, what I mostly love in Aquarius is its touchy narrative of a sexagenarian woman’s routine. A woman who lives the present without discarding her memories. She actually nurtures them through each song of her vinyl records collection, each picture laid out in non-digital albums and each wrinkle on her own face. These memories are part of Clara’s foundations. They feed her with guts and courage to face the present and fight for her beliefs.

It does not matter if I share or not Clara’s beliefs. It is her attitude in moving forward regardless of what people think or say that makes me think. It is her determination in cultivating flowerbeds when gardens are so rare that poses questions about our own story moments when the seeds of our character are sown. And that, of course, makes me revisit some o my memories.

I recall myself as the girl who played tick-tack-toe and skated in the streets of my little town, Petrópolis (*).  The same girl who spent vacations at her aunt and godmother’s house, in Jacarepaguá (**). A house that had a big shading backyard that was transformed by my uncle and godfather Leo in a fun fair, pending on the occasion. If it was Easter time, I, my cousins and all the children from the neighborhood transformed it in the garden where Easter bunny left chocolate eggs to be chassed. If it was Christmas, the backyard became a gala salon, with the big table fancily set to accommodate the whole family around cod fish plates, bottles of green wine and the left overs from the night before supper. If it was St. John’s season, the same space was transformed in Sir Leo’s Arraiá (***), with all the needed components to make a great June celebration.

I recall my grandparents’ home, in Leblon (****), when the streets were parallelepiped paved and, in the night before New Eve’s Day, we walked to the beach to watch Iemanjá celebrations (*****). When we returned to the house, there was the midnight supper and the mumbo-jumbos to guarantee luck, health and money in the New Year. I remember the night my cousin Horaida got in the living room chewing coins and throwing grapes over her elbow in the garden, instead of doing it the other way around. Till today I laugh when I remember her surprised and disappointed face, while thinking she would have to wait a whole year to try the grape/coins mumbo-jumbo again.

I know all of this regard to childhood and may sound as nostalgic and melancholic feelings of someone who is close to turn sixty years old. Feelings that, for some people, should be discarded as old trash. For me they are antique memories that should be nurtured. Memories that rescue portions of this woman who stares at me from the mirror every morning. A woman who has already discarded all her vinyl records, who has digitalized all the family pictures, and who, once in a while, becomes surprised by the wrinkles on her own face. Even though she does not consider hiding them under Botox any more. Not after watching Sonia Braga’s face with her wrinkles in Aquarius and finding it so beautiful.

(*) Petrópolis, little town 60 miles away from Rio de Janeiro, where I was born.
(**)Jacarepaguá, West side neighbourhood in Rio de Janeiro.
(***) Arraiá -- Expression that defines the whole scenario pulled together to celebrate St. John's day
(****) Leblon, South side neighbourhood in Rio de Janeiro] 
(*****) Iemanja -- The candomblé venerated sea goddess. 

9 comentários:

  1. Oi amiga, nao vi Aquarius, mas estou com voce nessa linda viagem ... Bjs

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    1. Não deixe de assistir quando/se passar aí, amiga. O filme realmente vale a pena.

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  2. Olá, sou Maria do Carmo O. Monteiro, professora, pedagoga e blogueira desde 2012. Gostei de seus posts e vou lhe acompanhar. Não tem gadget para os seguidores? Queria seguir. Parabéns está muito bom! Bom trabalho e sucesso.

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    1. Seja bem-vinda Maria do Carmo e obrigada pelo seu interesse no 2XTrinta. Como me tornei blogueira há exatamente dois meses, ainda não domino bem a plataforma do blogspot e não sei como criar/acrescentar o gadget para seguidores. Mandei msg para o helpdesk deles, mas ainda não obtive resposta. Por enquanto, o que posso fazer é te adicionar como amiga no Facebook onde criei uma página com o mesmo nome do blog, para divulgá-lo. Assim, aos sábados, dia em que publico novos posts, você receberá a notificação. Você disse que também tem um blog; como é o nome para eu procurar? Gostaria de conhecer.

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  3. Um tempo eu fiquei assustada. Hoje acho normal ter 62. A minha essência não muito ortodoxa permanece a mesma. Só em algumas circunstâncias tomo alguns cuidados pra evitar "issues". Vamo levando, né?

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  4. Oi Vera, gostei muito do seu blog e gostaria de saber se você tem Twitter ou Facebook para acompanhar seus próximos textos.
    Me interessa o assunto da Maturidade feminina. Se você quiser conhecer o meu, segue o link https://60eagora.blogspot.com.br/

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    1. Oi, Clevia, Obrigada pelo seu interesse no 2xTrinta. Fico muito feliz q a minha abordagem faça sentido pra vc.
      Estou no FB como Vera Dias e com a página 2xTrinta, q criei para promover o blog. Tentei adicionar vc como amiga, mas não consegui te encontrar. Peço então q vc me envie o convite. Assim, receberá a notificação dos próximos posts; publico todos os sábados.
      Vou acessar e acompanhar o 60eagora com o maior interesse. Abraços

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  5. Além de me encantar com a beleza in natura da Sonia Braga e sua atuação sublime, gosto daquela tensão prestes a explodir e que não explode como o esperado e que nos leva à reflexão. Esse mesmo clima tenso do cotidiano está presente no Som ao Redor. Beijos

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