Nos tempos em que o risco de
ser politicamente incorreto se traduz em linchamento -- físico e/ou moral --, fico me perguntando quando, como, onde e por
que rezar por uma só cartilha tornou-se obrigatório. Quando, como, onde e por
que essa cartilha tornou-se a única voz para defender diversidades. Quando, como, onde e por que qualquer livro,
escrito em outro idioma, passou a ser
sinônimo de desconfiança – mesmo quando, através de diferentes vertentes, busca o mesmo objetivo: acolher o que está à margem.
Sei que o simples fato de
formular a pergunta dessa forma me coloca em terreno movediço e que minha
natural simpatia pela pluralidade de linguagens muitas vezes inspira
desconfianças. Nada posso fazer a respeito, a não ser provocar quem me olha
enviesado e a mim mesmo, porque há momentos, tenho que reconhecer, em que
também radicalizo.
Assim, pergunto: E quem
nunca?...
Quem nunca se lambuzou,
depois de comer melado pela primeira vez?
Quem nunca morreu de medo,
depois de beber leite e comer manga?
Quem nunca despiu um santo,
para vestir o outro?
Quem nunca atirou pedras,
quando morava sob telhado de vidro?
Quem nunca se deslumbrou com
a mosca azul?
Quem nunca remediou o que não
tem remédio?
Quem nunca se rebelou, ainda
que não tivesse causa?
Quem nunca chafurdou em
culpa, depois de brigar (com ou sem razão) com o melhor amigo ?
Quem nunca sentiu inveja
(ainda que branca) do melhor amigo?
Quem nunca sentiu ciúme do
melhor amigo?
Quem nunca se omitiu (e
depois se envergonhou) em defender o melhor amigo?
Quem nunca riu de uma piada leviana sobre judeus, gays,
gordos, negros, portugueses, muçulmanos, brochas, cornos e bêbados? Ainda que não tivesse nada contra judeus,
gays, gordos, negros, portugueses, muçulmanos, brochas, cornos e bêbados?
Quem nunca?!
Eu… Senão sempre, senão quase,… Seguramente,
muitas vezes.
Sim, em algum momento e de
alguma forma, eu transgredi o que seria politicamente correto. Ultrapassei mesmo o limite. Muitas vezes por convicção,
em outras por mera confusão, em tantas me dando conta, outras tantas não tendo noção – “sem loção”,
como brincava a diarista, Fátima, que por vinte anos trabalhou na minha casa, e
cujo sobrenome agora me falta, (sei que esse esquecimento não é politicamente
correto), mas de quem sempre me lembro, falando em tom de premonição:
“Na vida, a gente joga pra
ganhar e se joga sem nem notar; quando olha, já rolou precipício. Aí, é
entregar a Deus pra não se ralar! “
Sabedoria de quem escalou
pirambeiras e comeu poeira, ao decidir deixar o Nordeste em busca de melhor
sorte. Determinação de quem sozinha criou três filhos, “porque viuvez não marca
hora, não senhora”. Profunda sabedoria
que, por duas décadas, pontuou momentos importantes; da minha vida e da vida
dela. Meu primeiro emprego em redação. Sua decisão de, mesmo sendo diarista,
trabalhar em uma só casa, a minha -- ”TPMs bastam duas!” A compra do meu primeiro apartamento. A
construção de mais dois quartos em sua laje. Minha mudança de profissão. Sua decisão
de aprender um novo ofício: corte e
costura. A conclusão do meu MBA. A formatura dos seus filhos. A adoção de Clementina, meu primeiro bichinho
de estimação. Sua disposição para, além de mim e da casa, cuidar também da
gata:
“Agora, são três TPMs, mas pelo menos uma mia,
ronrona e roça o pelo nas minhas pernas” – disparava entre risadas,.
Enfim, por vinte anos, Fátima e eu nos acompanhamos
em inúmeras situações.. Algumas em que
duvidávamos de nós mesmos, em outras em que não confiávamos no outro. Em
muitas, em que desacreditamos de tudo e, depois, voltamos a acreditar, porque a
vida sem fé perde a razão, ao contrário do que o ditado professa.
Nunca nos julgamos. Apenas seguimos nosso rumo, como ela gostava
de dizer, quando se referia a fatos consumados; a caminhos que “tinham que ser,
independente da gente saber”. Rumos que até aceitavam desvios, se aí morasse um
aprendizado, mas que não toleravam atalhos.
“A vida já é curta demais pra
gente cortar caminho”, ela, volta e meia, filosofava, referindo-se ao tempo,
que só o tempo do tempo tem.
Eu me calava. Me recolhia à
insignificância de quem nem sabe direito onde quer chegar, mas tem pressa e por isso se embrenha sempre no trajeto que
lhe parece mais rápido. “Apressado come cru”, diz o ditado. Demorei um pouco a entender o que definia o
meu percurso. Que não adiantava correr, porque sempre havia o tempo certo para
chegar. Porque sempre fui aquela que, quando corre, tropeça, mal se reequilibra,
cata-cavaco, tomba e se arranha, A que só aprende, depois de provar do pó do
asfalto e/ou da terra, tanto faz. E só então se levanta, capenga e volta a
caminhar com os joelhos esfolados. Segue o rumo. Aquele mesmo da filosofia da
Fátima: o que tinha que ser.
O que tinha que ser, não
importa se eu já me lambuzei comendo melado;
se já morri de medo ao beber leite, depois de comer manga; se já despi
um santo para vestir o outro; se já atirei pedras, mesmo tendo telhado de
vidro; se já me deslumbrei com a mosca azul; se já remediei o que não tinha
remédio; se já me rebelei apesar de não ter causa; se já me chafurdei em culpa,
depois de brigar (com ou sem razão) com o melhor amigo; se já senti inveja (ainda
que branca) do melhor amigo; se já senti
ciúme do melhor amigo; se já me omiti (e depois me envergonhei) em defender o
melhor amigo.
E tampouco importa, se o
melhor amigo era/é judeu, gay, gordo, negro, português, mulçulmano, brocha,
corno ou bêbado. Porque amigo não julga, aceita. Aceita, acolhe e abraça,
ponto.
Aceitar, acolher, abraçar.
Aceitacolheabraça ponto com ponto br… Qual o melhor verbo-composto para
transformar em link ou em hashtag? Qual
a melhor prática para aprender a conviver com o que é diverso, ainda que ele seja o nosso oposto? Qual o melhor exercício para aprender a perdoar
a priori, já que ninguém escapa das
próprias limitações? O saudoso poeta
Tite de Lemos perguntava e, ao mesmo tempo,
respondia, em versos:
“Quem, diante de Deus,
peca?”.
Eu, pobre em rimas e sem qualquer
verve, apenas repito, meio à toa e muitas vezes ateia:
Afinal, quem nunca?!...
Afinal, quem nunca?!...
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When bullying becomes the
natural consequence to whom takes the risk of being politically incorrect, I
question myself when, where and why following the same guidebook has
become mandatory. When, where, and why
it has become the only voice to advocate for diversity. When, where, and why
any other book written in a different language has become a synonym of distrust
– even when it embraces the same cause.
I know that asking the
question in this fashion puts me on a hard place, as well as my sympathy for
plurality many times does. There is nothing I can do about this, but provoke
people who distrustfully look at me and challenge myself, since there are times
– I should recognize -- I become as radical as those people are.
So, I ask: who never?
Who has never robbed Peter to
pay Paul?
Who has never shot its own
foot?
Whom the blue fly has never
bitten?
Who has never let it go because
it was what it was?
Who has never performed the
rebel without a cause?
Who has never felt guilty,
after fighting (with a reason or not) the best friend?
Who has never envied the
best friend?
Who has never felt jealous
of a best friend?
Who has never neglected
(and felt ashamed afterwords) defending a best friend?
Who has never laughed of a
frivolous joke, about Jewishes, gays, Negros, Muslims, Portugueses, fat and
drunk people? Even when not having anything against them?
Who never?
Me… If not always, I would
say, almost always or, at least, many times.
Yeah… in some moments and in
some way, I broke the rules of what was defined as politically correct. I
really overcame those boundaries. Many times because I was so sure. In others,
because I was totally confused. In some, I was aware of what was going on. In
others, I did not have a clue. “No cue”, as Fatima, the cleaning lady who
worked in my house for twenty years and whose last name I can not remember right now
(this lack of memory is not politically correct, is it?), used to say. She said
that, as a premonition, every time she thought someone was lost:
“In life, we throw our cards
to win and many times that means throwing ourselves over the cliffs without
noticing. When that happens, God is the only way out. The only way to survive
without multiple scars”.
This was her wisdom.
Something she built on the experience of leaving home in the Northeast of the
country, when she was young, to pursue a better future and with the need of
raising three children on her own. “Widowhood does not make an appointment; it
simply happens, madam!” The wisdom that
highlighted important moments; on her life and on mine: my first job as a
journalist in an important newsroom; her decision on working for only one house,
mine – “Two PMSs are enough”; the purchase of my first apartment; her home two-bedroom
expansion. my career change; her sewing lessons; my MBA.; her kids’ graduation;
my first pet adoption – Clementine – and her availability to take care of the
house, of me and the cat.
“Now, we have three PMSs, but
at least one of them meows, purrs and grubs its fur on my legs”— she said
between laughs.
After all, during twenty
years, Fatima and I shared many situations. Some in which we doubted of
ourselves. Others in which we could not trust anyone. In many we simply
disbelieved everything, but quite after recovered our beliefs, because life
without faith misses its own reason. Although the saying states the opposite.
Even being very different
from each other, we never judged ourselves. We only “followed our way”, as she
used to say every time she faced one of those ‘it is what it is’ situations:
“The paths as they had to be,
regardless of what we knew about them”. Paths that could even accept deviations
if that meant learning something, but that could not stand shortcuts.
“Life is too short to make it
shorter”— she used to say philosophically.
I shut up. Even when I did
not know where I wanted to go, I was always in a hurry; always ready to take a
shortcut. It took me time to understand the patterns that defined my path; to
realize I could run, but would be always that one who stumbles, double-trips,
falls and gets wounded and, then, stands up and follows its own way. That very
way defined by philosophical Fatima: the one as it should be.
The one as it should be, no
matter if I have robbed Peter to pay Paul; if I have shot my own foot; if I
have been bitten by the blue fly; if I have performed the rebel without a cause;
if I have felt guilty, after fighting my best friend; if I have envied my best
friend; If I have been jealous of my best friend; if I have neglected defending
my best friend.
And it does not matter if the
best friend was/is Jewish, Muslim, gay, Negro, Portuguese, fat or drunk.
Because friends do not judge, they simply accept, welcome and embrace each
other. And that’s it, period.
Acceptwelcomembrace.com We should transform these words in links and hash
tags to nurture the practice of getting along with diversity, even when that means
living with the opposite of ourselves. Even when that means forgiving anything
in advance, because we all have limitations. The Brazilian poet, Tite de Lemos,
used to define this attitude with a question:
“Who sins before God?”
Without verses and rhymes, I
accept my limitations and answer:
After all, who never?!...
Amei! " quem nunca..."
ResponderExcluirObrigada, por ter compartilhado, Laura :)
ExcluirPolíticamente correto é um saco. O q interessa é aceitar o outro de jeito que é. Se rolar a oportinidade da piadinha, fazer a piadinha. Mas piadinha não maldade. Não "piadinha" de ódio. E tem mais se alguém não se sente confortável com o diferente, não fica perto do diferente. Se manda! Vai procurar sua turma. E nunca, nunca agredir o diferente. Só porque é diferente? Ridículo. ..
ResponderExcluirTambém acho, Ju :)
ExcluirAdorei, Vera! Acrescento que aceitar a diversidade é um bom passo, mas não é suficiente: é preciso incluir. Diversidade com inclusão. Estou compartilhando o seu post.
ResponderExcluirObrigada por compartilhar. Concordo plenamente com você: é preciso aceitar, acolher, abraçar... Pra mim, isso significa incluir.
ResponderExcluirSó queria, se possível, identificar DB, o autor, ou autora do comentário. :)
Oi amiga, muito obrigada por abordar um tema tao controverso. Estamos vivendo um momento muito dificil em que a intolerancia esta aumentando em varias partes do mundo sob diversos rotulos. Concordo que precisamos celebrar nossas diferencas sem esquecer o que nos une como seres humanos. Em vez da cultura de "nos e outros outros", deveriamos buscar construir pontes para o entendimento num mundo cheio de diversidade.
ResponderExcluirÉ isso, Cyber: pontes para o entendimento.
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