Quem sou eu

sábado, 7 de janeiro de 2017

Sobre 'vó Vera' e outros sustos / About 'grandma Vera' and other frights

Gosto dos dias nublados. Gosto do grizé nas nuvens e do meu coração inflado pela névoa filtrada da quase-chuva. Nesse verão de temperaturas quase africanas, mesmo para quem mora em São Paulo,  esses dias cinzentos, de brisas amenas, são hiatos bem-vindos e desejados na fornalha que nos rouba a possibilidade de vida inteligente fora do ar condicionado. Aproveito a trégua trazida por um deles, para caminhar pelo centro velho desta capital que, por motivos profissionais, adotei como minha cidade há doze anos.

Entrada da Galeria do Rock
…Praça da Sé, Largo de São Francisco, Rua São Bento, Viaduto do Chá, Anhangabaú, Teatro Municipal… Percorro esse trajeto sem consultar os mapas que expatriados, mesmo os de longa data como eu, sempre precisam ter à mão. Perambulo pelas ruas de fachadas pichadas por celacantos que não provocam mais maremotos (*) e vou perguntando aos ambulantes instalados no caminho: ‘por favor, onde fica a …”  Por isso, claro, faço algumas baldeações desnecessárias.

Meu destino é a velha Galeria do Rock , na rua 24 de maio, onde procuro uma ótica-oficina, especializada em consertos de antigas armações. Um desses lugares que poderíamos considerar improváveis, nos sete andares de lojas pouco ortodoxas, onde estúdios de tatuagem e piercings proliferam e disputam cada metro quadrado com vitrines de moda roqueira. Acho que nunca vi concentração tão grande de caveiras estampadas em camisetas pretas. Quase não resisto à tentação de comprar uma para vestir imediatamente e me sentir menos peixe for a d’água, enquanto subo os lances de escada em busca da Ótica Gilmar. Encontrá-la no quarto andar me resgata desse delírio heavy metal, para me concentrar no que me levou ali: o conserto de um óculos.  A atendende me informa que ele estará pronto em uma hora. Um bom pretexto para explorar um pouco mais desse templo de tribos tão diferentes da minha.

Subo e desço mais algumas vezes os sete andares da galeria. Cruzo com roqueiros de todas as idades e estirpes. Aleatoriamente, visito lojas que vendem skates,  tênis, jaquetas de couro… Até que entro em uma de discos de vinil e paro para observar o adolescente que, em atitude quase religiosa, escuta  ‘Abbey Road’ dos Beatles. É interessante vê-lo quase venerar umas das trilhas sonoras que embalaram minha adolescência nos anos setenta. … ‘Something in the way she moves…’ Minha admiração mal disfarçada acaba chamando sua atenção e ele dispara animado

“Adoro esses caras. Viajo no som deles!’ --  para em seguida perguntar em tom profissional:

”Você está procurando algo específico? Posso ajudar?”

Me dou conta, então, que ele é o vendedor da loja. Vou logo explicando que não procuro nada em especial, que estou apenas fazendo hora para buscar um conserto na ótica do quarto andar e que fui atraída pela visão de tantos vinis num só espaço.

“Me levou de volta no tempo”,  justifico.

Ao que ele, prontamente, retruca:

“Irado! Quer ouvir algum outro álbum dos Beatles ou dos Stones?! Temos praticamente tudo, aqui”.

Resolvo, então, testar sua percepção e seu conhecimento sobre o que, acho, está implicito na conversa como sendo “a minha época” e pergunto o que ele tem do Pink Floyd e do Led Zepplin.  Me surpreendo com o entusiasmo da sua reação:

“Nooooossa! Você gosta mesmo do que é bom!” , festeja, ao mesmo tempo em que já vai me mostrando a lista de títulos, me conduz para a bancada onde posso ver os discos e discorre sobre os melhores hits dos dois grupos.  Sem me dar tempo de escolher o que quero ouvir, afirma empolgado:

“O Led Zepplin, pra mim, define o que é rock”.

E coloca  ‘Whole lotta love’ (Um bocado de amor) no toca-discos, uma das minhas favoritas.

A voz rouca de Robert Plant, vocalista do Led Zepplin, ainda grita  I'm gonna give you my love, ah / oh, whole lotta love / wanna whole lotta love… , quando me dou conta da hora e que o expediente da ótica terminará em dez minutos. Agradeço ao vendedor a atenção que me dedicou, mesmo sabendo que provavelmente não compraria nada, e vou me despedindo em direção à saída da loja. Ele me acompanha até a porta e, antes de me dar tchau, conta:

“Amo todos esses discos, porque os escutava sempre com a minha avó. Ela faria sessenta anos este ano, se fosse viva. Seu gosto musical me fez lembrar muito dela”.

Interior da Galeria do Rock 
O susto é tão grande, que fico imóvel e em silêncio por uma eternidade de segundos. Até conseguir articular um insípido ‘então, tá. Legal’ e disparar
pelo hall da galeria escada acima, para finalmente buscar meus óculos. Ao testá-los diante do espelho da ótica, não consigo conter um ataque de riso.

“Então, tá, vó Vera”— digo em silêncio para a minha imagem refletida.

Pago o conserto, venço os quatro lances de escada de volta até o térreo e deixo a Galeria do Rock pela entrada oposta à que usei quando cheguei ali. Saio em plena avenida São João. Respiro fundo e caminho, pensando no que o adolescente da loja de discos me dissera e na minha completa ausência de reação. Me comovo com a sua saudade da avó, que teria a idade que completarei este ano, travestida em clássicos do rock and roll.  Me pergunto: como seria ter um neto de dezoito anos que gosta de Beatles e Rolling Stones? Eu, logo eu,  que não quis ser mãe e só adotei gatos como filhos. Vó Vera, balbucio pra mim mesmo. Vó Vera, repito em silêncio, lembrando do filho do meu enteado, que desde pequenininho sempre me surpreende quando me chama assim. Vó Vera… E ele sempre me chama assim. 

Então, tá, meu neto, ainda que postiço, Luis Eduardo. Como você tem só doze anos, ainda temos tempo para descobrir o barato de ouvir Beatles e Rolling Stones juntos.   

Então, tá, Vó Vera.

Ao cruzar a avenida Ipiranga com a São João, caio no clássicoo clichê: lembro dos versos de Caetano, em Sampa, e choro baixinho.  ‘Alguma coisa acontece no meu coração…’
Volto pra casa caminhando sob a chuva que agora cai sobre a cidade. A cidade da qual, de acordo com o mesmo Caetano,  ‘Rita Lee é a mais perfeita tradução’.

(*) Celacanto provoca maremoto era o chamado ‘grito-slogan-marca’ da maioria dos pichadores do Rio de Janeiro, nos anos 80/90.

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I love cloudy days. I love to watch the grey clouds and smell the potential rain on them. In the Brazilian Summer, when you cannot be smart out of the air conditioner, these few fresh grey days are a welcome and desired break. I take the opportunity of one of them to walk around downtown and better explore São Paulo, the city I adopted as mine twelve years ago for professional reasons.

Sé square, San Francisco corner, San Bento street, Chá Bridge, Anhangabaú, Municipal Theatre … I browse around those locations without checking the maps expatriated like me always bring with them. I move forward asking people on my way: ‘where is, please…?’ And, of course, that implies some unnecessary detours.

Perspective of the interior of the seven-floor-building
The old Rock Gallery, at 24 de maio street, 62,  is my destiny. I am looking for a recommended eyeglasses repair shop that is specialized in fixing old frames. One of those places we would never look for in a seven-floor building where tattoos and piercing studios compete for space with rock and roll fashion stores. I think I have never seen so many skull black T-shirts together in a place. I have to make a big effort to avoid buying one for myself, as a way of mitigating my outsider feelings while I look for Gilmar’s eyeglasses repair shop. Finding it on the fourth floor rescues me from this heavy metal rock and roll hallucination to focus on what brought me there: fix my eyeglasses.  As they tell me they need an hour to do the job, I take the opportunity to browse around this unusual gallery.

I go in and out of many of the four hundred plus stores spread over the gallery’s seven floors till I find a vinyl boutique where a teenager listens to Beatles’ Abbey Road album. …’Something in the way she moves…’ When he notices me in the store, he states excited:

“I love these guys. I fly with their sound”—to complete in a more professional tone:
“Are you looking for something special? Can I help you?”

I realize he is the store attendant and tell him I am not looking for anything specific. I explain I am buying time to get my stuff at the four-floor eyeglass repair shop in an hour and justify myself:

“I saw so many vinyl’s here that got attracted. It was like flying back in time”.

His reaction is enthusiastic:

“Great! Would you like to listen to any Beatles’ or Stones’ albums? We have almost all of them here”.

I, then, decide to check how much he knows about rock and roll and about what I believe he thinks is ‘the music of my time’. So I ask him about Pink Floyd and Led Zepplin and get surprised with his excitement:

“Wow! You really know what is good, don’t you?!”

He celebrates my taste, shows me the list of albums he has in the store and, before I can say anything, he states:

“For me, Led Zeppling defines what rock and roll is”, while he plays one of my favorite Led Zeppling’s songs: ‘Whole lotta love’.

I still listening to it when I realize what time it is and notice Girmar’s eyeglasses repair shop is up to close its tenure for the day. So, I thank the attendant for his attention and start saying bye bye on my way to the store exit. He follows me and,  before saying bye, he tells me:

“I love all these song albums, because I used to listen to them with my grandmother. If she was alive, she would turn sixty this this year. Your music taste reminded me a lot of her”.

I am so shocked that I keep silently stand still for seconds that look like an eternity. When I finally articulate something, I can only say: “That’s OK. Cool!”, before running away through the gallery’s hallway towards the eyeglasses repair shop four floors above. When I finally try my fixed eyeglasses and look at my image in the shop’s mirror. I can’t avoid laughing:

“So, that’s it, grandma Vera. That’s it.”— I say to myself silently.

I pay for the service, walk down to the ground floor and leave the gallery through the opposite entrance I first got in. I am in São João Avenue. I breathe deeply, think about what the vinyl’s store attendant told me and recall my lack of reaction. I feel moved about his connection with his grandmother. I ask myself how it would be having an eighteen-year-old grandson who loved Beatles and Rolling Stones. Me, the one who have never wanted to be a mother and only have adopted pets. Granma Vera, I whisper to myself. Granma Vera, I repeat silently, remembering of my stepson’s son who has ever called me grandma Vera, regardless of any frights it would provoke on me.

Yes, Grandma Vera.

OK. So it is, my grandson Luis Eduardo. As you are only twelve, I believe we still having time to discover together the pleasure and beauty of listening to Beatles and Rolling Stones.

OK. That’s it, grandma Vera.

While I walk through São João and Ipiranga avenues crossroads, I can not avoid the cliché of silently crying while thinking about Caetano Veloso’s  ‘Sampa’ (*) lyrics: ‘Alguma coisa acontece no meu coração’ (Something happens to my heart)…
I walk back home while it rains over the city. The city which, again according to Caetano, ‘Rita Lee é a mais perfeita tradução’ (Rita Lee (**) is the most perfect translation).

(*) Caetano Veloso is a recognized Brazilian composer who created the song ‘Sampa’ in honor of São Paulo, capital of São Paulo state in Brazil. This song means to Brazilians what New York New York means to Americans.
(**) Part of Sampa lyrics that mention the Brazilian Rock and Roll queen: Rita Lee.

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12 comentários:

  1. Show vo Vera! Meu sobrinho tb curte muito esse som. Tem gente q tem bom gosto em qualquer idade!! Whole lotta love então...kkkkkkk! Uma vez passei por ali mas só dei uma olhadinha. Estava atradada. Pena...

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  2. Show vó Vera!!! Gostei muito. Beijos

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    1. Pois é, Vó Vera!... Fazer o que? Quando a idade chega, querendo ou não, gostando ou não, a gente vira mesmo avó Rs Rs Rs

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  3. Cyberzinha, voce de avo e muito "cool" ...

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    1. Já que é pra ser avó, Cyber Cyber, que seja pelo menos cool, certo? :--)))

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  4. Muito bom Vó Vera ! Sorte poder ter aproveitado até aqui e muito mais por vir e ouvir. Não no vinil, talvez, mas esses sons imortais continuam fantásticos. Excelente texto ! Beijos

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  5. Valeu, Ricardão! Muito bom saber que você é leitor do 2xTrinta :--))

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  6. Muito bom vovó do Rock!!!
    👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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    1. Só vivendo pra crer :--))) Se tivessem me contado, eu não acreditaria. yeah! Yeah! Yeah!

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