Nasci
48 anos depois que mulheres dos Estados
Unidos e da Europa, no início do século passado, começaram a se organizar e a lutar por
melhores condições de vida, pelo acesso ao mercado de trabalho e pelo direito
ao voto. Também não havia nascido,
quando elas decidiram criar uma data para lembrar ao mundo que o feminino era e
é, sim, fato, mas também tinha e tem direitos. Não lembro exatamente quando comecei a
refletir sobre essas questões – talvez por volta dos 10 anos, quando ouvi falar
das feministas queimando sutiãns em praça pública – mas me recordo, com
clareza, de ter questionado o valor da iniciativa da Organzação das Nações
Unidas de instituir, em 1977, o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. Para
mim, naquele momento, tudo já havia sido conquistado.
Eu
tinha 20 anos, havia três que deixara a casa dos meus pais para cursar
jornalismo em outra cidade e fazia dezoito meses que ingressara no mercado de
trabalho. Com meu salário de estagiária, mais os ganhos com trabalhos
free-lance, conquistara minha independência econômica: pagava todas as minhas contas e usufruia da
sensação única de caminhar com as minhas próprias pernas; de ser dona da minha
vida. Me sentia realmente poderosa e, entre o deslumbramento e a miopia dessa egotrip, não cogitava que meus colegas homens ganhassem
trinta por cento mais que eu pelo mesmo trabalho e acreditava, piamente, que
todas as mulheres da minha geração tivessem acesso a oportunidades equivalentes
às minhas.
Santa
alienação!
O
primeiro choque de realidade aconteceu no dia em que cheguei mais cedo e
deparei com a diarista -- uma moça da minha idade -- na frente do espelho do
quarto, experimentando o vestido que eu acabara de comprar para usar no meu
aniversário de 21 anos. Desorientada pelo flagrante, ela perdeu a voz ao tentar
se explicar. Diante daquele silêncio constrangido, eu me dei conta da diferença
entre poder realizar sonhos e só ter a possibilidade de tê-los frustrados. Não
deixei que ela tirasse o vestido – a verdade é que o modelo caíra melhor nela do que em mim
– não permiti que se humilhasse em pedidos desculpas, não a demiti. Ela
trabalhou na minha casa por mais de quinze anos. Fomos aliadas em várias
batalhas travadas ao longo do tempo em que convivemos. Tive a felicidade de vê-la graduar-se em técnica de enfermagem e
conseguir emprego na profissão.
O
segundo wake up call (chamada para
despertar) ocorreu, meses depois, quando, solidariamente, acompanhei uma amiga
a uma clínica para fazer um aborto. Fora o custo emocional de compartilhar uma
decisão que, para ela, era mais que dolorosa, experimentei o
pânico pela possibilidade de sermos
presas em flagrante – ela, por estar exercendo um direito que deveria poder ter
sobre seu próprio corpo e que aqui é considerado crime; eu, por ser cúmplice.
Sobrevivemos, eu e ela, incólumes perante a lei, porém, marcadas naquilo que
fica dolorido na alma. Minha amiga hoje tem quatro filhos crescidos e bem
criados, mas até hoje se lembra, com uma ponta de sobressalto, do que vivemos, naquela clínica, numa tarde de
outono.
O
terceiro ‘cai na real, Vera!’ se deu, anos mais tarde, quando, durante o ciclo
de promoções na firma em que eu trabalhava, vi uma colega e amiga que, todos
reconheciam: deveria ser nomeada para
uma gerência, ser preterida por causa de um homem que, mesmo sem ter
toda a sua competência, foi colocado no posto, porque era ‘chefe de família’. A justificativa ela ouviu de quem tomou a
decisão, como algo muito natural e passível de ser aceito, até que ela lhe
informou que era/é, ela mesmo, mãe de família -- cuidava/cuida sozinha de dois filhos. Minha
amiga hoje exerce cargo executivo em uma grande empresa e dá gargalhadas toda
vez que, brincando, lhe pergunto se já enviou o cartão de visitas para quem um
dia não reconheceu o seu talento.
Eu
poderia continuar enumerando aqui todas as situações que desmentiram minhas certezas dos 20 anos. Todas as
circunstâncias que me levaram a reconhecer que a independência e a autonomia
que pude conquistar, ainda tão jovem, não eram (e ainda não são) garantidas a
todas as mulheres da minha e de outras gerações. Poderia recapitular todos os
fatos que me fizeram concluir que, mesmo o caminho que trilhei como meu foi
pavimentado por aquelas mulheres que ocuparam praças e avenidas, quando eu nem
havia nascido. Poderia, mas seria um post interminável, tantos foram os
acontecimentos que esfregaram e ainda esfregam a crueza do mundo real na minha
cara.
E é
por conta dessa realidade que, antecipadamente, celebro aqui o dia internacional
da mulher, cuja importância um dia tanto questionei. Eu o celebro não como
ocasião para festejos – pretexto para distribuir rosas vermelhas, mas como uma
data que nos convida a refletir sobre o que somos hoje, de onde viemos e para
onde queremos ir; como um momento para recalibrar forças e estreitar laços, sem
perder a clareza e tampouco a doçura. Uma data para inspirar homens e
mulheres de todas as nacionalidades,
raças, idades, credos e opções de gênero, a buscarem o entendimento, a
harmonia, a cooperação. Uma data para, simplesmente, nos fazer acreditar que há
de chegar o dia em que não precisaremos marcar no calendário dia que nos lembre
que somos apenas humanos.
……………………………………………………………………………….
Se você gostou deste
post, por favor, o compartilhe com sua rede de relacionamentos, clicando em um
dos botões que aparecem no rodapé da tradução em inglês abaixo. Se deseja, a
partir de agora, receber notificações dos novos posts do blog no seu próprio
email, preencha o requerimento no espaço-retângulo logo abaixo do meu perfil, na
coluna à direita deste artigo.
……………………………………………………………………………….
I was born 48 years after women from the United States
and Europe at the beginning of the last century began to organize and fight for
better living conditions, access to the labor market and the right to vote. Nor
was I born when they decided to create a date to remind the world that the
feminine was and is, a fact, but also had and has rights. I do not remember
exactly when I began to reflect on these issues - perhaps around the age of 10,
when I heard about feminists burning brassieres in a public square - but I
clearly remember questioning the value of the United Nations Organization's
initiative to institute , In 1977, the 8 of March like International Women's
Day. For me, at that moment, everything had already been won.
I was twenty years old, there were three I had left my
parents' house to study journalism in another city and had been in the labor
market for eighteen months. With my trainee salary, plus the gains from
free-lance jobs, I had gained my economic independence: I paid all my bills and
enjoyed the unique sensation of walking with my own legs; Of being the owner of
my life. I felt really strong and, amidst the dazzle and myopia of this
egotrip, I did not think that my fellow men would earn thirty percent more than
I did for the same job, and firmly believed that all the women of my generation
had access to opportunities equivalent to mine. .
Holy alienation!
The first shock of reality happened the day I arrived
earlier and came across the cleaning lady - a girl my own age - in front of the
bedroom mirror, trying on the dress I had just bought to use on my 21st
birthday . Disoriented by the flagrant, she lost her voice as she tried to
explain herself. In the face of this embarrassed silence, I realized the
difference between being able to fulfill dreams and only being able to
frustrate them. I did not let her take off the dress, I did not allow her to
humiliate herself in apologies, I did not dismiss her. She has worked in my house
for over fifteen years. We were allied in several battles fought over the time
we live. I was fortunate to see her graduate in nursing technique and get a job
in the profession.
The second wake-up call came months later, when, in
solidarity, I accompanied a friend to a clinic to have an abortion. Aside from
the emotional cost of sharing a decision that was more than painful for her, I
experienced panic over the possibility of being caught in the act that is
considered a crime in Brazil. We have survived, me and her, unblemished before
the law, but marked in what is painful in the soul. My friend today has four
grown and well-bred children, but to this day she remembers, with a startle,
what we live in that clinic on an autumn afternoon.
The third 'wake up to reality, Vera!' came years later
when, during the promotions cycle at the firm where I worked, I saw a colleague
and friend whom everyone recognized: should be appointed to a management, be
deferred because of a man who, even without having her skills, was placed in
the post because he was 'head of the family'. The justification she heard from
the one who made the decision, as something very natural and amenable to being
accepted, until she informed him that she was herself the mother of a family
and cared for two children alone. My friend today holds an executive position
in a big company and laughs every time, jokingly, I ask her if she already sent
her business card to those who one day did not recognize her talent.
I could continue enumerating here all the situations
that denied my 20 years old certainties. All the circumstances that led me to
recognize that the independence and autonomy that I was able to conquer, still
so young, were not (and still are not) guaranteed to all the women of my and of
other generations. I could recapitulate all the facts that led me to conclude
that even the path I walked like mine was paved by those women who occupied
squares and avenues when I was not even born. I could, but it would be an
endless post, so many were the events that rubbed and still rub the crudity of
the real world in my face.
And it is because of this reality that, in advance, I
celebrate here the International Women's Day, whose importance I once questioned
so much. I celebrate it not as an occasion for festivities - a pretext to
distribute red roses, but as a date that invites us to reflect on what we are
today, where we came from and where we want to go; as a moment to recalibrate
strength and strengthen ties, without losing clarity or sweetness. A date to
inspire men and women of all nationalities, races, ages, beliefs, religions and
gender choices, to seek understanding, harmony, cooperation. A date to simply
make us believe that the day will come when we will not need to mark the
calendar on the day that reminds us that we are only human.
...........................................................................................
If you liked this post, please share
it with your network of relationships by clicking one of the buttons that
appear in the footer. If you now want to receive notifications of new blog
posts in your own email, fill out the request in the space-box below my profile
in the column on the right side of this article.
...........................................................................................
É, mesmo, impressionante, em pleno século XXI, a gente ter que ter um dia pra chamar a atenção de homens e mulheres também, se tocarem e entenderem o que vc falou: somos apenas humanas.
ResponderExcluirE de repente perdi a noção do tempo e achei que ainda estivéssemos no século dezenove (por extenso, para registrar bem o meu susto!).
Excluirainda temos de lutar e defender o óbvio "Bertolt Brecht"
ResponderExcluirTemos. Principalmente quando o óbvio é tão primário e, desculpe a redundância: óbvio.
Excluirtenho orgulho de ser mulher
ResponderExcluirEu também.
ExcluirOlha, Vera, a gente vai vivendo e não percebe as diferenças de tratamento. Obrigada por chamar atenção para isso. Parabéns, você está fazendo a sua parte!
ResponderExcluirTo tentando, Crisantema. Ainda que tardiamente. Porém, acredito que sempre há tempo, quando a vontade é genuína. Assim, antes tarde do que nunca, certo? :-0)
ExcluirNós deveríamos ter evoluído mais..Nem deveria ter um dia especial da mulher,visto que a mulher merece muito mais..oxala, daqui a alguns anos, isso tenha mudado.
ResponderExcluirOxalá, Silvio
Excluir